A partir de entrevistas a Carlos Costa, Luís Rosa escreveu um excelente livro, que merece ser lido. “O Governador”contribui para a qualidade da democracia portuguesa.

O PS e as esquerdas não gostaram do livro, e apressaram-se a desqualificar Carlos Costa. Convém, por isso, começar com Carlos Costa. O antigo governador é um português com origens humildes que triunfou na vida através do seu esforço e do seu trabalho. Não precisou de militar um partido político, ou de ser ministro, para chegar a governador do Banco de Portugal.

Carlos Costa foi sobretudo um alto funcionário europeu. Mesmo quando trabalhou para o Estado português, fê-lo no contexto das instituições europeias. Foi funcionário da Reper (a embaixada de Portugal junto da União Europeia), foi depois funcionário da Comissão Europeia durante cerca de uma década, e foi ainda Vice Presidente do Banco Europeu de Investimento, de onde foi para o Banco de Portugal. Saiu com prestígio de todas as funções que desempenhou em Bruxelas. A competência deve ser elogiada, não deve ser desmentida ou ignorada por razões políticas. A vida profissional de Carlos Costa é o resultado das oportunidades que a integração europeia deu a muitos portugueses. É lamentável que muitos no PS, um partido que sempre defendeu a Europa, pretendam ignorar o óbvio.

Carlos Costa não seguiu uma carreira política, embora estivesse mais próximo do PSD, mas sempre no centro político. Aliás, foi convidado para Governador do Banco de Portugal por um governo socialista, o segundo de Sócrates. Acabou como uma vítima da guerra que o PS fez ao período da troika (como todos sabem, o governo socialista nada teve a ver com a vinda da troika para Portugal), e da pretensão absurda de António Costa de demonstrar, contra toda a evidência, que o governo de Passos Coelho não conseguiu uma saída limpa do programa de ajustamento.

Sócrates foi o primeiro inimigo socialista de Carlos Costa. Mas a culpa foi inteiramente do antigo PM. Os capítulos iniciais são impressionantes em relação ao retrato que fazem de Sócrates, e à sua incapacidade de exercer funções públicas. Sócrates recusou a ajuda da União Europeia e do FMI até ao limite do possível, ignorando completamente o interesse nacional. Até Mário Soares tentou convencer o antigo PM a pedir ajuda internacional, mas Sócrates recusou-se a ouvir o fundador do seu partido, o qual conhecia muito bem as consequências de uma falência financeira do Estado.

Carlos Costa também acusa o actual PM, António Costa, de desrespeitar a independência das autoridades reguladoras, como o Banco de Portugal. O PM nega a versão do antigo governador. Mas tem dois problemas. Em primeiro lugar, existem exemplos que dão credibilidade à versão de Carlos Costa, desde telefonemas no passado a tentar influenciar autoridades judicias durante a investigação do caso Casa Pia até à escolha de um ministro do seu governo para governador do Banco de Portugal. Quem se comporta deste modo, pode perfeitamente tentar influenciar uma decisão do Banco de Portugal. Em segundo lugar, não basta a António Costa resolver esta discordância nos tribunais (embora tenha o direito de também o fazer). Mas a ameaça contra a independência de autoridades reguladoras é sobretudo uma questão política. Por isso, o PM precisa de dar uma resposta política. Enquanto não o fizer, prevalece a versão de Carlos Costa. O poder do PS pode evitar que se fale nisso – afinal quem se mete com o PS, leva – mas a realidade não muda, nem pela força de cumplicidades, silêncios e cobardias; e a realidade acaba por desgastar.

Muitas vozes no PS também dizem que Carlos Costa revela conversas privadas e processos que deveriam ficar no segredo dos gabinetes. Esta questão é central para a qualidade da democracia, e faz-me regressar ao meu ponto de partida. Trabalho num país, o Reino Unido, onde livros como O Governador são a regra e não a excepção. São livros que contribuem para a transparência da vida política, como se exige em democracia. Quem discorda do relato de Carlos Costa, escreva um livro a expor as suas divergências e os seus argumentos. Depois, compete aos leitores fazerem os seus julgamentos. É a regra das democracias transparentes e com qualidade.

Mas há claramente um problema sério no modo como cada vez mais se entende a democracia em Portugal: como um regime de amigos, de conhecidos e de inimigos, e não de instituições independentes. Para António Costa, as decisões são tomadas entre amigos, entre camaradas de partido, entre pessoas que se conhecem, e não entre pessoas que exercem cargos, passageiros, em instituições públicas. Para quem olha para a política deste modo, a amizade, a lealdade e a obediência é que contam, e não a competência. Carlos Costa foi vítima desse entendimento da política.

Por fim, é óbvio que Carlos Costa terá cometido erros, possivelmente alguns graves. A resolução do BES é um tema muito polémico, havendo bons argumentos a favor e contra. É impossível tratar esse tema com justiça num artigo deste tipo. Mas há um ponto óbvio: Carlos Costa não foi seguramente culpado da situação a que chegou o BES em 2014.

PS: Muitos atacaram o livro sem o ter lido, dizendo mesmo que não tencionam lê-lo. É uma atitude impressionante e que revela a ausência de uma tolerância mínima em relação ao debate político, inaceitável em democracia. É sobretudo grave que o ministro das Finanças o tenha dito. Primeiro, porque é ministro e deveria ter mais cuidado como o modo como exibe a sua falta de tolerância em público. Depois porque tem a pasta das Finanças. Se lesse o livro, talvez aprendesse alguma coisa. Sabe Sr. Ministro, podemos aprender muito com livros dos quais discordamos.

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