A transição digital implica, como sabemos, a existência de infraestruturas de banda larga, a promoção de uma cultura digital disseminada feita de plataformas tecnológicas, redes sociais e sistemas de comunicação interativos, a programação e o software com acesso livre, start-ups e modelos de negócio abertos. O universo colaborativo, por sua vez, contempla uma gama muito variada de serviços comuns e compartilhados: os consumos colaborativos de recursos ociosos, a produção social pelos pares, os serviços partilhados pelas comunidades de utilizadores, o financiamento participativo, os espaços comuns de criação criativa, a aprendizagem e formação colaborativas, o uso de moedas criativas, mas, também, os comuns intangíveis do grande universo das redes. Imagine-se, por exemplo, o potencial colaborativo e a inteligência coletiva que podem habitar as redes de cooperação e extensão empresariais, as redes de investigação e desenvolvimento, as redes de solidariedade e inovação social, as redes culturais e criativas e as redes amigas do ambiente, entre muitas outras. Estamos, assim, no limiar da chamada economia dos bens comuns colaborativos (BCC) tal como foi definida pelo ensaísta americano Jeremy Rifkin no livro A sociedade do custo marginal zero (edição original, 2014, pp 155-193).

Todavia, esta extensa área da economia BCC é, por enquanto, mais uma miragem, pois o capitalismo popular e cognitivo da sociedade do conhecimento está muito longe de ter atingido a sua velocidade de cruzeiro. O que temos neste momento é o gigantismo capitalista dos grandes conglomerados tecnológicos GAFA (Google, Apple, Facebook, Amazon) e NATU (Netflix, Airbnb, Tesla, Uber) e a corrida desenfreada de pequenas empresas start-up que buscam chegar o mais rapidamente à condição de unicórnios (valorização de mil milhões de dólares) para serem vendidas e fazerem fortuna rapidamente. A ilusão ou o logro é ainda mais evidente se pensarmos na lógica de funcionamento dos chamados mercados biface, em que é feito um uso abusivo dos nossos dados pessoais, protagonizado por aqueles conglomerados e, ainda, nos condicionamentos que a sociedade algorítmica impõe quotidianamente sobre os nossos comportamentos.

Acresce que, nesta fase de transição, não é demais alertar para as perversões que os novos modelos de negócio digital podem implicar e estar atentos, por isso, aos efeitos não-intencionais e os danos colaterais que lhes são inerentes, desde logo o lado tóxico das redes digitais e o risco de alienação que elas comportam. Por outro lado, ainda, há uma distância grande a separar o nomadismo digital, mais solitário, de uma comunidade de coprodutores e cogestores de bens comuns colaborativos, mais solidária. Com efeito, persiste um défice de cultura colaborativa e solidária na sociedade política em geral que precisa de ser rapidamente preenchido, pois é determinante para fundar um sólido movimento social se quisermos consolidar uma ética do bem comum de suporte a um capitalismo popular de pequenas plataformas que esteja para lá do mero negócio digital.

É neste contexto, também, que se fala de um regresso dos comuns (Coriat, 2015), não apenas dos comuns materiais e tangíveis, mas, sobretudo, dos comuns do conhecimento, da cultura e da solidariedade social à boleia da sociedade da informação e do conhecimento e das tecnologias e plataformas colaborativas. Dou alguns exemplos onde a administração dos bens e serviços comuns pode e deve ser aplicada: as áreas de paisagem protegida, as zonas de intervenção florestal, os condomínios de aldeia, as áreas integradas de gestão da paisagem, os regadios coletivos, as zonas de pesca costeira, a gestão dos baldios, a gestão de águas interiores, a gestão dos bancos de solos e de alojamento local, os bancos do tempo e voluntariado, os serviços ambulatórios de proximidade, a gestão de aldeamentos seniores, a gestão das instituições de solidariedade social, para lá, obviamente, da grande área das atividades culturais e criativas etc.

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 Relembro, agora, algumas das propriedades da filosofia dos bens comuns, todas elas apontando no sentido de uma economia de rede e proximidade:

  • O regresso aos valores de uso, à utilidade coletiva e ao governo das regras,
  • A prioridade ao acesso e ao serviço em vez da propriedade e da posse,
  • A assunção dos custos de transação face aos grandes intermediários comerciais,
  • A apologia da proximidade, os circuitos curtos, a liberdade de auto-organização,
  • Os consumos responsáveis e partilhados e o combate ao desperdício,
  • A apologia dos bens de mérito e o seu papel na socialização das relações,
  • A plasticidade e abertura dos novos modelos de negócio colaborativo,
  • O financiamento participativo e a economia das plataformas colaborativas.

No plano político-administrativo já sabemos que a economia capitalista mais convencional privatizou os benefícios e socializou os prejuízos dos seus efeitos externos remetendo estes para o orçamento de Estado. Agora, com a transição digital, há muito espaço para o crescimento dos bens e serviços comuns colaborativos coproduzidos em redes e plataformas descentralizadas e distribuídas e, desta vez, fica apenas por saber qual é a parcela que é interiorizada/corrigida pelo universo da economia BCC no conjunto dos já famosos efeitos externos negativos que o Estado socializou por via do contribuinte e burocratizou por via da administração pública. Esta é, talvez, a interrogação mais pertinente que podemos fazer nesta altura, pois estou seguro de que o universo colaborativo crescerá imparavelmente.

Neste contexto, a grande inovação da economia BCC é o acréscimo de eficácia e eficiência introduzido pela transformação digital nas áreas habitualmente institucionalizadas e burocratizadas, mas, também, a devolução da responsabilidade social aos cidadãos e à sociedade civil, ou seja, podemos promover a desindustrialização social einstitucional e reduzir substancialmente as burocracias sociais que vêm do século passado. Sem, no entanto, perder de vista algumas armadilhas eventuais que uma desinstitucionalização precipitada pode arrastar. De resto, no horizonte deste movimento de longo alcance de coprodução e cogestão os sinais já aí estão. O Estado Social, por razões de dívida e sustentabilidade financeira, será obrigado a reduzir cada vez mais a despesa estrutural e a substituir funcionários públicos pela coprodução de serviços e por serviços em regime de outsourcing. A economia social e solidária (IPSS) seguirá o mesmo caminho e muitas das suas funções serão externalizadas para as comunidades de cuidadores locais do universo colaborativo. O mesmo se aplica aos bens públicos locais (veja-se a polémica atual sobre a transferência de competências para as câmaras municipais) e à grande área das atividades culturais e criativas para onde se transferirão muitos trabalhadores em regime intermitente e de freelance. E, de uma maneira geral, a economia BCC chegará também, com uma geografia muito variável, ao universo das redes antes referidas em formatos de engenharia colaborativa e financeira muito variados, mas envolvendo quase sempre uma redução da despesa pública estrutural e um aumento do financiamento participativo dos parceiros envolvidos.

Notas Finais

O grande universo da economia BCC – autorregulação da sociedade civil, plataformas distribuídas, o regresso dos comuns, uma nova aprendizagem social, coprodução e cogestão de serviços públicos, serviços de rede e proximidade, um universo de prestadores, cuidadores e curadores, uma nova divisão do trabalho, mais e melhor financiamento participativo – está em plena formação. Aqui chegados, é forçoso reconhecer que estes progressos, impulsionados pelo advento da sociedade da informação e do conhecimento, ainda não se traduzem em melhorias substantivas de natureza colaborativa na sociedade política em geral. Desde logo, na promoção da literacia digital, em especial na população ativa, no reforço da sua empregabilidade e na proteção do emprego intermitente. Recorde-se que a formação ordenada da economia dos BCC é, numa sociedade que envelhece rapidamente, um verdadeiro imperativo categórico, um autêntico grito de alerta contra a desigualdade social, a discriminação e a causa da dignidade humana. Tudo leva a crer que a transição tecno-digital nos conduzirá a uma sociedade de regimes socio-laborais muito diversos e flexíveis. Numa primeira fase, nas margens do sistema instituído e sob a forma de uma mobilidade experimental e algo caótica onde o nomadismo digital também entra. Numa segunda fase, de forma mais organizada, à medida que os nativos digitais e os empreendedores tecnológicos, empresariais e sociais assumirem o controlo da situação nas suas próprias mãos, com muito menos economia de estado e muito mais economia partilhada e colaborativa.

Finalmente, se formos capazes de entender e praticar esta inovação estrutural no universo laboral e colaborativoda economia BCC estaremos perante uma verdadeira revolução nos mercados e políticas ativas de emprego. Em primeiro lugar, a atual bipolarização do mundo do trabalho poderá ser desbloqueada, em segundo lugar, os macjobs, a economia gig e o trabalho intermitente serão bem-vindos, em terceiro lugar, as instituições de ensino profissional, técnico e superior, poderão praticar uma política de portas abertas e facilitar o melhor regime de empregabilidade e formação, em quarto lugar, todos estes perfis ocupacionais, uma vez validados pelas autoridades públicas, garantirão um direito fundamental de proteção social para lá da mera condição laboral em cada momento, finalmente, a revisão do direito fiscal promoverá e facilitará o melhor regime de pluriatividade e plurirrendimento no quadro do trabalho intermitente e do trabalho independente. Por último, as exigências do paradigma tecno-digital no que diz respeito às novas métricas de certificação ESG (responsabilidade ambiental, social e corporativa), onde se incluem as boas práticas de economia circular, os novos regimes de trabalho flexível e as áreas de boa governança corporativa, áreas que também convergem para a economia BCC. Voltarei ao assunto.