Estamos em plena digitalização da sociedade, das pessoas e das coisas. Doravante, tudo é inteligente “à maneira digital”: a casa, o carro, a empresa, o escritório, a escola, a estrada, o hospital, etc. Tudo adquire vida própria, o real é virtual e o virtual é real, e tudo debita informação a todo o tempo. Este é o futuro radioso prometido pela economia da informação, da análise de dados, do Big Data ou religião do dataísmo.

Depois da mão divina e da mão invisível do mercado, eis-nos chegados à mão sedutora e benevolente do Big Data. A economia do Big Data é, se quisermos, a mão invisível da liberdade de circulação da informação. Mais dados, sempre mais dados, e estaremos cada mais próximos da verdade, nesse grande bazar dos processadores de dados, o universo dos algoritmos e dos meta-algoritmos. O racional do dataísmo é encontrar uma norma-padrão de comportamento e, a partir daí, prevenir contra a incerteza e o desvio que a nossa imperfeita racionalidade biológica sempre transposta. A grande ambição da inteligência racional do dataísmo é substituir a “nossa imperfeição”, afinal, a nossa consciência emocional e individual e a nossa intersubjetividade. Neste sentido, com muita benevolência, podemos dizer que os algoritmos são uma espécie de irmãos mais velhos, se quisermos, narradores autorizados da nossa existência. É melhor segui-los!!

Num oceano de informação só esses calculadores universais, os algoritmos, têm a capacidade analítica para processar e tratar tantos “dados irrelevantes” de natureza infra pessoal. A economia do Big Data constrói assim uma linguagem comum e abre a porta a uma nova teoria do equilíbrio geral, uma teoria dos meta-dados que instituem uma personalização sem sujeito ou, então, várias personalizações ou trajetórias possíveis onde nós (ou alguns de nós) “podemos escolher as nossas narrativas pessoais”.

Enfim, uma governação sustentada em algoritmos, uma trajetória sem sobressaltos, a história do futuro à nossa frente com uma “impressionante claridade”. Vale a pena uma breve incursão pelos mandamentos deste verdadeiro evangelho do nosso tempo.

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Os dez mandamentos da governação dos algoritmos

A digitalização da sociedade alterou bastante as convencionais categorias da relação social. A fronteira entre o real e o virtual faz cada vez menos sentido, por isso, a sociedade, nos dias de hoje, é essencialmente um assunto interpretativo (veja-se a pós-verdade e as fake news) e muitos efeitos são não-desejados, não-intencionais e contraintuitivos.  Por isso, as novas categorias do social, a sua matéria-prima, são: a virtualidade, o risco, a simulação, a dissimulação, a representação. A simulação e a dissimulação não deixam ver o princípio da realidade e a plurissignificação da realidade segrega tanta contingência como liberdade. O universo digital e a cibercultura estão fascinados pela distinção entre autenticidade e simulação e a desordem entre consciência e inteligência passou a ser uma linha vermelha entre algoritmos orgânicos e inorgânicos, um lugar onde se deposita, apesar de tudo, a esperança de uma revelação.

Neste contexto geral, nós somos, seres humanos, uma espécie de algoritmo biológico. A partir de agora, no universo virtual do Big Data, nós passámos a ter, também, uma espécie de personal coach, um assistente inteligente, um algoritmo. O meu algoritmo é uma meta-aplicação, uma aplicação de aplicações, concebido a pensar no meu aperfeiçoamento pessoal. Tenho, pois, um irmão gémeo algorítmico que me segreda ao ouvido as últimas novidades tecno-humanistas do Big Data e do Dataísmo. Será isto o futuro? É uma possibilidade em aberto, entre outras. Eis algumas brevíssimas reflexões a propósito, sob a forma de mandamentos.

  1. O reflexo em vez da reflexão

No universo digital e na religião do dataísmo nós, os humanos, somos um “acontecimento informativo” no grande fluxo de informação. Dos sinais infra pessoais aos padrões supra individuais, somos um reflexo em vez de uma consciência reflexiva, como se a vida se resumisse à personalização de um fluxo de dados. Para um algoritmo do Big Data somos uma informação sempre atualizada, sem passado nem futuro, uns “agora” sucessivos, uma otimização do quotidiano obtido por via de uma vertigem digital desse quotidiano.

  1. A correlação em vez da causalidade

À medida que o nosso comportamento converge para o padrão supra individual a correlação aproxima-se da causalidade, fica a personalização em constante movimento e desaparece o sujeito, o algoritmo cumpre, assim, a sua tarefa. Tudo o que vem de trás, do “velho humanismo” perdeu importância e foi sendo dissipado: os sentimentos, as distrações, os sonhos, os desejos, isto é, o nosso passado bioquímico e tudo o que fazia a inteligência emocional do ser humano individual. O comportamento desviante torna-se, doravante, um simples desvio-padrão.

  1. Os dados em vez dos conceitos

A velha ciência e cognição dos conceitos e do pensamento conceptual está em risco, pois dos algoritmos bioquímicos e orgânicos aos algoritmos eletrónicos e inorgânicos tudo é possível no universo do dataísmo. É como se os conceitos fizessem parte da “velha cognição” e revelassem uma margem de incerteza ou “excesso de peso” que já não se compadecem com o rigor metodológico da nova ciência cognitiva. A ciência dos dados e da inteligência artificial não sofre de obesidade nem tem excesso de peso, é um novo universo cognitivo que emerge e vestindo um fato feito por medida.

  1. Não se preocupem com o livre-arbítrio

Não se preocupem com o livre-arbítrio, nós, os vossos algoritmos, estamos em condições de traçar o caminho seguro entre o determinismo e o acaso. Basta que nos prestem toda a informação necessária, que nos cedam a massa imensa de informação que é debitada constantemente e a tempo inteiro em todos os suportes digitais de que sois fiéis depositários e utilizadores. E tudo praticamente a um custo marginal zero. A partir daí, com o vosso consentimento, o Big Data usará o algoritmo apropriado para nos dizer o que vai ser o nosso futuro hoje. Com rastreabilidade quanto baste, seremos os vossos cuidadores.

  1. A hibridação faz parte da evolução natural

Os algoritmos transportam-nos até à grande aventura da hibridação homem-máquina, à fusão da inteligência humana com a inteligência artificial. Nesta grande aventura pós-humanista do século XXI entram também os órgãos biónicos, os sensores biométricos e os chips nanotecnológicos do homem aumentado e transumanista. Esta hibridação pós-humanista abre o caminho para dois debates interessantes: em primeiro lugar, o binómio inteligência-consciência, no sentido em que os algoritmos são inteligentes e, também, deep learningconscientes, em segundo lugar, este deep learningdo sistema algorítmico transporta-nos para um universo transumanista, para uma nova variedade de espécie humana!!

  1. Quem não deve não teme e a servitude é voluntária!

O Big Data poderá um dia, por via de uma utilização malevolente, converter-se em Big Brother? Os profetas do bioprogressismo preferem transformar a normatividade social expressa pelo dataismo em otimismo maternal e preferem falar de Big Mother, relegando para plano secundário o lado mais sombrio do Big Brother. Afinal, quem não deve não teme. A híper vigilância pode ser deveras incómoda, mas a servitude voluntária é cada vez mais preferível à violência gratuita dos humanos.

  1. A presunção do acontecimento, o acaso deixou de existir

Como já dissemos, somos, os humanos, essencialmente, um acontecimento informativo num fluxo continuo de dados e informação. A depuração e decantação feita pelo algoritmo de serviço aos dados brutos recolhidos em múltiplas fontes de informação permitem-nos afirmar a presunção do acontecimento com uma elevada probabilidade. Onde antes estava o acaso, está agora a necessidade. Tudo em nosso benefício, pois a nossa distração e erro já causaram muito risco moral, assim como muitos danos colaterais graves.

  1. A intenção sob vigilância, o culpado dá lugar ao suspeito

Se seguirmos de perto a indicação do nosso assistente digital, o algoritmo, e as suas recomendações, não haverá razões para estarmos preocupados, isto é, as nossas intenções não serão postas em causa e não haverá motivos para um processo de intenções. Digamos, apenas, que uma justiça cautelar será muito mais eficaz e eficiente. Seremos apenas suspeitos e não culpados e teremos, porventura, perdido uma parte significativa da nossa liberdade e do nosso livre arbítrio. Porém, em nome de uma servidão voluntária e consentida. Menos humana e mais artificial.

  1. Não há humanidade desnecessária e a intimidade é uma anomalia

Os dados serão a matéria-prima, nua e crua. Por isso, tudo deve ser descontextualizado e desenraizado. As relações humanas e sociais não são categorias com valor analítico suficiente, só atrapalham o trabalho de depuração e limpeza. Por outro lado, a inteligência humana é limitada por natureza e precisa da inteligência artificial para aumentar a sua capacidade intelectual. Do mesmo modo, a inteligência emocional, por exemplo, sob a forma de relações solidárias, carrega uma espécie de obesidade desnecessária e inconveniente e mesmo a intimidade é uma anomalia, um detalhe, porque, doravante, não haverá nada para esconder. Com o tempo, a inteligência artificial tomará conta da ocorrência.

  1. O governo é uma indústria ineficaz e nós uns idiotas úteis

Os termos da equação entre a inteligência humana e a inteligência artificial estão a mudar, seja qual for a perspetiva, mais bioprogressista ou mais bioconservadora. Com efeito, no quadro da grande transformação digital em curso, o discurso emergente diz-nos que governo é uma indústria ineficaz, as instituições em geral são caras e preguiçosas e a democracia é cada vez mais desajeitada para lidar com a governação algorítmica. Temos de encontrar rapidamente um novo modo de pensar, estar e fazer a política, sob pena de sermos reduzidos a uns idiotas úteis da governação algorítmica.

Notas Finais

Chegados aqui, façamos desde já alguns avisos à navegação.

Os algoritmos têm na sua conceção modelos matemáticos que refletem a ideologia e a orientação de quem os concebeu. Eles podem aumentar as desigualdades e ameaçar a democracia, isto é, podem transformar-se em “armas de destruição matemática” (Cathy O’Neil, 2016, Weapons of Math Destruction). Em momentos decisivos das nossas vidas, podemos “estar distraídos” e confiar demasiado em decisões arbitrárias e discricionárias de alguns algoritmos. Não troquemos os termos da equação, eles são apenas AI (assistentes inteligentes) e não os senhores do universo.

Na sequência do tópico anterior, poderíamos dizer que os algoritmos tanto podem ser uma guarda pretoriana de um candidato a ditador, como a guarda avançada de um capitalismo global e predador como, ainda, uma rede distribuída de proximidade ao serviço de uma sociedade mais igual e democrática. Ao ser tudo isto, o algoritmo revela aquilo que nós já sabíamos, isto é, a sua funcionalidade instrumental ao serviço de “homens sem rosto”, que, geralmente, desprezam os limites da política e as responsabilidades públicas que lhe são inerentes.

De facto, estão em marcha alterações culturais e civilizacionais de grande amplitude que apenas aguardam uma oportunidade para explodir à superfície. Eis algumas dessas questões finais que aqui deixo para reflexão:

  • O humanismo como singularidade desde o século XVI, logo, que humanismo vamos reabrir para lá dos algoritmos, do Big Data e do dataísmo, ou seja, há uma “nova espécie humana”, novas variedades em construção para lá do nosso algoritmo bioquímico?
  • O que fazer com a nossa minúscula ilha de consciência, ou seja, será o pós-humanismo uma transição para outros universos de sentido e de estados mentais?
  • Para lá dos modelos matemáticos da sociedade algorítmica, quem são os homens sem rosto que nos governam e qual é o grau de responsabilidade pública e democrática que eles nos devem?
  • E sobre a governança da sociedade algorítmica, como é que o pensamento e a ação política lidam com estas novas “corporações do algoritmo, do Big Data e do dataísmo”?

Em síntese final, depois de tanto acaso e necessidade, de tanto determinismo e aleatoriedade, de tanta arte, política e filosofia, estaremos nós reféns da governação algorítmica, seremos nós os novos crentes do dataísmo? E nesta encruzilhada do tempo, onde fica o nosso livre-arbítrio e a incerteza sobre o futuro, afinal, a nossa pequena margem de liberdade?

Universidade do Algarve