Qualquer que seja a nossa posição em relação ao conflito, estejamos nós do lado da “única democracia do Médio Oriente” ou do povo “vitima da mais longa ocupação de que há memoria”, deveria ser absolutamente inquestionável que o rapto de civis (especialmente menores de idade), a violação e abuso sexual, o assassinato a sangue-frio de militares que se renderam e a profanação de cadáveres não são nunca e em caso algum formas legítimas de guerra. O que o Hamas fez neste 7 de Outubro não pode nunca ser explicado por qualquer crime cometido antes por Israel. É sempre ilegítimo, independentemente de quem o faz ou por que o faz.
As milícias do Hamas, o movimento político (e grupo terrorista) que controla a faixa de Gaza com pulso de ferro desde a curta guerra civil de 2007, conseguiram dar um golpe poderoso e inesperado no seu inimigo, Israel. Até aqui, nada de extraordinariamente novo. Poderia ser apenas mais um episódio do longo conflito israelo-palestiniano. Muitas questões serão levantadas sobre a eficácia do gigantesco sistema de segurança israelita, sobre a actuação do Shin Bet e da Mossad, que não conseguiram prever o ataque, do IDF (Israel Defense Force) e de todo o aparato militar que não conseguiu impedir ou reagir a tempo, e ainda de como foi possível Israel voltar a ser apanhado desprevenido precisamente no aniversário dos 50 anos do devastador ataque de 1973 do Egipto sobre o canal do Suez (denominada Guerra do Yom Kippur pelos israelitas, e Guerra de Outubro pelos árabes).
O próximo passo é relativamente fácil de prever: Israel invadirá Gaza com o objectivo assumido de arrancar o Hamas pela raiz. Não desistirá enquanto não tiver os líderes do Hamas atrás de grades ou sete palmos debaixo do chão. O agradecimento público da liderança do Hamas ao Irão, que no passado confirmou a sua ajuda e as suas armas, coloca a república islâmica também na mira de Israel. Não ficaria surpreendido se alguns dos alvos de Israel fossem no Irão, em especial na sua indústria nuclear. O Hezbollah, outro satélite iraniano, já demonstrou claramente o seu apoio ao Hamas e aproveitou para fazer alguns ataques com rockets na fronteira norte. Se não tentar incursões no território israelita, poderá ser um alvo adiado temporariamente, mas se tentar algo mais ousado as forças armadas israelitas terão que reagir. Uma presença constante em Gaza também não está fora da equação e o conselho que o primeiro-ministro israelita Benjamin Netanyahu deu à população palestiniana para sair de Gaza pode significar o início de uma limpeza do território. Gaza é, para todos os efeitos, uma enorme prisão a céu aberto. Os seus habitantes estão cercados pelas forças israelitas (e a sul pelos egípcios) em terra, no mar e no ar. A densidade populacional de Gaza é uma das maiores do planeta. Não tem acessos independentes ao mundo exterior o que os impede de ter qualquer tipo de comércio externo, indústria ou turismo que não seja autorizado por quem desejaria que estes simplesmente não existissem. Quando Benjamin “Bibi” Netanyahu os aconselha a sair, para onde espera que eles vão? Certamente não para Israel. Também não lhes dará passagem segura para a Cisjordânia (onde também duvido que fossem bem recebidos). O que significa que pretende empurrar aqueles dois milhões de pessoas para o deserto do Sinai a sul, no Egipto. A acontecer, os descendentes dos refugiados de 1948 e 1967 tornar-se-ão os novos refugiados de 2023.
Mas é perfeitamente possível que Bibi use mesmo uma força desproporcional. A contestação interna e os passos que vinha dando no sentido de reduzir o escrutínio democrático que existia no país serão agora resolvidos sem grande oposição. A marcha para a guerra é inevitável e, como sempre acontece, a sua liderança – for the time being – não será posta em causa.
Israel já era um país armado até aos dentes. Tudo indica que ainda o será mais nos tempos mais próximos. Uma possível ocupação de Gaza significará um esforço gigantesco e que exigirá uma atenção enorme e um custo elevado em vidas e shekels.
Na diplomacia regional temos ainda outros impactos possíveis. Dependendo da violência e duração do conflito, estes eventos poderão facilmente atirar a Arábia Saudita para fora dos acordos de Abraão (uma assinatura que, ainda há umas semanas, era praticamente dada como certa). Os Emirados e o Bahrain, que originalmente assinaram estes acordos com Israel em 2020, poderão seguir a liderança saudita. Se isto acontecer, será uma vitória diplomática para o Irão.
Este novo estado de coisas representa o harakiri da liderança do Hamas. Para israelitas e palestinianos, mais um passo na eternização do ódio que os vem consumindo há um século. Gaza será ainda mais um território falhado enquanto a instabilidade na Cisjordânia e o avanço dos colonos israelitas só tenderá a piorar a situação. Quanto a Israel, será cada vez mais um apartheid, com as suas instituições democráticas progressivamente mais fragilizadas e uma população firmemente segregada por linhas étnicas e religiosas. Infelizmente, tudo indica que a região ficará mais insegura, mais militarizada e mais radicalizada.