O homem, cujo nome não retive, tinha o aspecto, e talvez a idade, do actor Sam Elliot. Falava com uma voz também grave, lenta e calma. Encontrei-o numa roda de amigos, à porta de uma loja que vendia relíquias do estilo “americana”, as bugigangas que os antigos deitavam fora e pelas quais nós pagamos uns trocos valentes. Após uma conversa animada sobre ninharias, perguntei-lhe se ali eram todos republicanos, respondeu-me que sim, excepto por alguns idiotas, e ficou perto de sorrir atrás do bigode. Quando lhe perguntei em quem apostava para vencedor das “presidenciais”, o esboço de sorriso sumiu: “Meu amigo, eles tentaram matar Trump. É possível que tentem novamente, e consigam. Se não conseguirem, é garantido que tentarão roubar as eleições.” E aí a voz desceu uma escala: “Eu, como muitos, sou veterano do exército. Estive na guerra e tenho armas. Não será bonito.” Antes que o homem me descrevesse os planos detalhados da rebelião, fiz-lhe uma terceira pergunta: “Não acha que Trump pode ganhar legitimamente?” A resposta foi curta: “Deus queira que sim.” Enfim inquirido acerca dos eventuais méritos de Kamala Harris, a resposta demorou a sair e saiu assim: “Parece uma viciada em crack”.
O cenário da conversa era Williams, cidade pequenina às portas do Grand Canyon. Já lá passei e pernoitei umas sete ou oito vezes. É evidentemente um lugar “conservador”, do tipo de conservadorismo rural e “patriótico” que os americanos das grandes metrópoles e os europeus de todas as regiões não percebem, distorcem e detestam.
Em Williams, no fundo duas ruas em que uma delas integra a velha Route 66, há, numa ou noutra fachada, referências visíveis e laudatórias aos militares. Há três ou quatro igrejas minúsculas e sortidas. Há estabelecimentos que vendem pechisbeques turísticos e vestuário “western” bom, exótico e carote. Há, além de meia-dúzia de restaurantes com ou sem música ao vivo e churrasco e álcool em abundância, um café que serve as melhores tartes de fruta que conheço (sugiro com dúvidas a de noz-pecã) e um bar onde se pratica a dúbia arte do karaoke até às duas da madrugada. Por regra, salvo o ocasional – e invariavelmente grotesco – êxito do actual Top 40, os participantes insistem no insípido “country” contemporâneo, enfado digerível com “margaritas”. Lamento informar que a minha interpretação de “I Walk the Line”, de Johnny Cash, não inspirou um regresso aos clássicos.
Dentro e fora do bar de karaoke, a população de Williams é, por um pedacinho de nada, maioritariamente “branca”. A julgar pelo aspecto de diversos habitantes, o convívio cordial dos “anglos” com os numerosos “hispânicos” extravasa as cantorias e vai até à cama, quiçá ao altar. O PIB per capita local, muito dependente do turismo, está pouco acima do português, o que na América é sinal de pobreza. Resta notar que Williams é no Arizona, um dos seis ou sete estados que decidirão as próximas eleições.
Em qualquer desses estados, e afinal em qualquer dos demais quarenta e três ou quarenta e quatro, o eleitorado de Trump reside em lugarejos como Williams, e o eleitorado da dona Kamala (ou de quem quer que os democratas escolhessem) vive e vota em centros urbanos. Os habitantes de Williams votam com inclinação similar à dos habitantes de, digamos, Sonora, Califórnia, ou de Somerset, no Maine.
Não compro a tese de que os EUA nunca estiveram tão divididos, mas admito que nunca estiveram divididos desta maneira. As tradicionais fronteiras políticas que separavam o “norte” do “sul” ou o litoral do interior valem menos que o fosso entre os “deploráveis”, nas palavras de Hillary Clinton, e os “esclarecidos”, nas convicções da vastíssima maioria dos media convencionais. Se não é ilícito, o confronto é de facto desigual. A imprensa que sobrevive eleva a dona Kamala às primeiras páginas e a um estatuto próximo da canonização. As televisões passam incontáveis anúncios da respectiva campanha, em que a candidata ri, ri imenso, ri sem parar porque se pára de rir é obrigada a dizer as inanidades que diz. Hollywood e o “streaming” e as celebridades são devotos da senhora. E Elon Musk, outrora um consenso de brilhantismo tecnológico, transformou-se em “fascista” desde que comprou o Twitter e defende a liberdade de expressão, incluindo a do sr. Trump e, por curiosa inerência, a dos seus eleitores.
O homem de Williams praticamente não tem voz e não existe no dito “espaço público”, a não ser enquanto destinatário de chacota. Por isso ele, e milhões de homens seus semelhantes, desconfia de um sistema realmente injusto, obviamente enviesado e na cabeça dele fraudulento. Em 2008, Barack Obama condenou os moradores das povoações que “odiavam os que não são iguais a eles”. A acusação recíproca é mais válida. Do que conheço da América, são sobretudo os “progressistas” que abominam a diferença, os “esquisitos” que ao contrário deles receiam com e sem motivos os abalos fortuitos ou deliberados na economia, os que não acham boa ideia a imigração descontrolada, os que não são indiferentes aos miseráveis que ocuparam as “baixas” citadinas, os que não consideram o Black Lives Matter uma organização caritativa, os que não se alegram por ver as universidades tomadas por maluquinhos, os que não acreditam na menstruação masculina, os que valorizam o carácter acima da “identidade”, os que em suma não pensam “correctamente”.
No fundo, a coisa é simples. O sr. Trump, por acaso de carácter duvidoso e pensamento idem, não me atrai e só me interessa na medida em que por torcidos caminhos acabou a representar eleitoralmente o tipo de americanos que tratam bem o estrangeiro que eu lá sou. Com as necessárias ressalvas, os “deploráveis” e os “xenófobos” são de uma simpatia avassaladora para com estranhos. A pandilha da “fraternidade” e da “inclusão” é menos fraterna e “inclusiva”. Resumindo muito, a América dos primeiros convence-me a regressar sempre que posso, a dos segundos repele-me crescentemente. E temo que os segundos estejam a ganhar, não apenas em Novembro. Em Novembro, imaginar que um adulto, na posse das faculdades mentais e do direito de voto, levará a dona Kamala a sério dá vontade de chorar. Ou de rir. Ela ri.