Raramente escrevo sobre assuntos com muita atualidade, porque é sempre preferível deixarmos passar algum tempo antes de formarmos uma opinião. A espuma dos dias traz sempre consigo uma névoa que temos de esperar que dissipe. O tempo tem de fazer o seu trabalho.
A onda de violência e destruição que seguiu à morte de Odair Moniz no bairro do Zambujal gerou uma onda inflamada de reações. No dia 30 de outubro a Câmara de Loures aprova uma recomendação do Chega para despejo de habitações municipais de quem provadamente participa ou incentiva crimes, que recolheu os votos de socialistas e sociais-democratas. Ricardo Leão, presidente do município e dirigente máximo da estrutura socialista de Lisboa, dá voz pública a este sentimento, que é partilhado por muitos dos seus munícipes.
Poucos dias tinham passado quando, num artigo assinado por três altos dirigentes socialistas é duramente criticada a afirmação feita por Ricardo Leão. A alusão a um possível despejo é considerada uma ofensa grave aos valores, identidade e cultura do partido socialista, e uma violação grosseira das competências da Assembleia da República e dos tribunais, pondo em causa o direito à habitação dos mesmos, e ainda dos inocentes que integrem o agregado familiar. Ao intervirem no debate público num nível tão elevado, acabaram por amplificar o que foi pouco mais do que uma reação apressada que aparentemente visava controlar a onda de violência que parecia espalhar-se, e quando as imagens recentes dos distúrbios em Paris ainda estavam na memória de todos.
Vemos hoje que a reação a quente aos acontecimentos não permitiu à vereação de Loures pensar com mais serenidade na complexidade das situações. O próprio presidente da autarquia considerou-a mais tarde como correspondendo a um mau momento. Num estado de direito em que se acredita no primado da lei e que esta permite fazer justiça, deve deixar-se aos tribunais a tomada de medidas de coação necessárias e proporcionais. Deve também esperar-se que seja garantida a compensação de todos aqueles que viram os seus poucos bens destruídos. Sublinhe-se que em caso algum se pode pactuar com o incêndio de caixotes de lixo ou de automóveis, encontrando justificações psicológicas ou sociológicas para a destruição premeditada. E que a confiança na eficácia da justiça não é propriamente muito grande…
Um dos argumentos lançados para o debate é a de que “não existe nenhuma relação entre criminalidade e imigração”. Note-se que este nexo causal não só foi afastado pelo próprio Ricardo Leão, como nem sequer é invocado por exemplo em França nas sucessivas arruaças dos “coletes amarelos” onde o papel da imigração não é central, mas sim o empobrecimento. Um cidadão português dos quatro costados que viva num bairro camarário e participe na destruição desse bairro deve poder manter a sua habitação sem consequências? Não sei responder, mas sei que essa situação não pode ser considerada normal e não pode ser consentida de forma continuada. E que os procedimentos têm de ser iguais para todos.
É por isso que trazer para primeiro plano a questão “enfrentar o Chega exige firmeza nos princípios e combater as perceções fáceis com a realidade dos factos” é no mínimo redutor. O objetivo não pode ser enfrentar o Chega, ou qualquer outro partido político, mas sim o de trazer paz aos bairros pobres da periferia de Lisboa, impedir que se transformem em guetos, que os bandos organizados os capturem, e promover as condições de vida e de trabalho para os que aqui vivem e nascem, e que precisam de oportunidades. As diferentes estratégias possíveis têm de se julgar pelos seus resultados e não pela aplicação de um conjunto de “princípios” que apenas tocam uma parte da realidade. Quem duvida deve porventura olhar de novo para as últimas eleições americanas.
A defesa dos direitos individuais, da separação de poderes, e do primado da justiça é muito importante e definidora da nossa vida social, mas pressupõe a penalização efetiva dos comportamentos violentos e destruidores. Nos ambientes urbanos muito tensos, em que a ordem não está estabelecida de forma consensual, germinam estes comportamentos e, por oposição, o sentimento de que é precisa uma atitude mais firme pelas forças de segurança. Quem considere que existem muitas situações que mereceriam um tratamento mais duro não incorre em qualquer ofensa grave a valores, e este sentimento têm de ser tido em conta.
Ricardo Leão é presidente da câmara municipal da Loures e André Ventura fez uma parte da sua carreira política aqui. Uma localidade onde existem bolsas significativas de pobreza, no seio das quais germina violência e onde se alimentam comportamentos extremos. Não estou aqui a fazer qualquer avaliação da qualidade destes ou doutros autarcas, ou a analisar a delimitação do território político de cada um. Mas acho que ter posições “equilibradas” e conciliadoras é mais fácil quando estamos longe dos problemas e das pessoas que com eles sofrem. E que são afetadas pela violência gratuita, não a aceitando como forma de protesto contra a sociedade.
A gestão da violência organizada e da marginalidade nos bairros mais desfavorecidos é um problema muito sério que não pode ser confundido com querelas pessoais ou de grupo. É verdade que os representantes políticos têm a obrigação de medir as suas palavras e pensar nas suas consequências, mas têm também de veicular os sentimentos de quem os elegeu. O filósofo espanhol Ortega y Gasset publicou, no prefácio da sua primeira obra, a frase “Eu sou eu e minha circunstância”. Num registo seguramente mais simples posso dizer que todos nós somos afetados pelo que nos rodeia e os temas políticos que mais nos tocam provêm muitas vezes dessa realidade. Quando vemos de muito longe os problemas da vida real, podemos ganhar grandeza e desprendimento, mas perdemos compreensão.