A inspeção foi à Escola e a súmula não é favorável. Os Senhores Inspetores vendem uma cartilha conotada com as “eduquices” que têm causado enorme erosão na apetência pela profissão docente.

Tenho um amigo que trabalha na Inspeção-Geral da Educação e Ciência. Várias vezes o ouvi defender, assertivamente, que a inspeção às escolas é fundamental para o controlo da qualidade e para a melhoria dos processos. «Depois da Inspeção visitar uma Escola, ela tem de ficar a funcionar melhor.» – é o seu lema.

Há dias, a Inspeção foi à minha Escola. Há inspeções administrativas, inspeções financeiras e inspeções pedagógicas. Desta vez foi pedagógica.

Houve algum rebuliço, como é habitual nestas circunstâncias. Os Senhores Inspetores analisaram atas, instrumentos de avaliação, grelhas de registo das avaliações, inquiriram docentes de diversas disciplinas, questionaram os métodos utilizados na avaliação dos alunos e foram-se embora, claramente montados no alto da sua insuflada sabedoria, injetada por orientação ministerial, com a obrigação de produzir um relatório e com a convicção de que tinham trazido as “luzes”, que tinham iluminado a penumbra onde alguns pobres e coitados vagueiam, lastimáveis docentes encastrados em décadas de experiência.

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Defendem que o ensino deve ser mais experimental, que deve corresponder melhor às experiências de vida dos alunos, que deve focar-se em situações da vida real, em problemas em contexto, pois o que é experimentado é que é, sobretudo, «promotor de aprendizagens significativas para todos os alunos», logo, a prática deve suplantar a teoria, dado que esta costuma ser cognitivamente exigente, nefasta para os desconcentrados, apropriada a elites e, portanto, pouco igualitária, apesar de todo o cuidado democrático em proporcionar o ensino a todos quantos dele queiram usufruir.

Contudo, são os Senhores Inspetores, sem experiência de ensino, que vão instruir os assombrados docentes, mesmo que estes tenham milhares e milhares de horas efetivas de aulas. Docentes que, apesar de tantas horas “de voo”, ainda demonstram dificuldades em “pilotar”. Bem sabemos que, na condução de aeronaves, o número de horas de voo é um fator de reconhecimento da capacidade do piloto. Mas quem é que disse que os professores são pilotos? Quem foi que lhes chamou condutores de crianças? Creio que foram os Gregos antigos, ao criar a palavra «pedagogo».

“Os senhores professores dão demasiada importância aos testes. Têm de diversificar os processos de avaliação. Parece que a vossa preocupação consiste em treinar os alunos para obterem boas notas nos exames.” – diz o Senhor Inspetor.

Daqui se deduz que o Senhor Inspetor tem pouca consideração pelos exames e pelas classificações que produzem. Alto lá! É que não é bem assim. Porque um pouco mais à frente está o Senhor Inspetor a tomar por referência as notas obtidas pelos alunos da nossa Escola nos exames nacionais, para criticar os docentes cuja avareza revela que as notas atribuídas são inferiores às notas dos exames, o que não pode deixar de merecer severa admoestação. Então, em que é que ficamos, Senhor Inspetor? Os exames são uma referência, ou não são? Devemos olhar para as classificações obtidas nos exames nacionais, ou não?

Se sim, sim!

Se não, não!

Se nim, pois…

É conforme o que interessar à governação.

Produzido o relatório, verificamos que é necessário traduzir para os alunos, nos instrumentos de avaliação, a importância relativa de cada um dos domínios ou tópicos. Muito bem. Porém, costumamos ouvir de Vossas Excelências que o conhecimento é multidisciplinar, que é necessário desenvolver projetos interdisciplinares, pois a realidade é complexa e o conhecimento deve integrar os diversos pontos de vista proporcionados pelas diferentes disciplinas. Ótimo.

Portanto, quando na disciplina de Matemática se coloca em contexto um problema que envolve o cálculo da derivada da função posição, vulgarmente conhecida como velocidade, que importância relativa se dá ao domínio do conhecimento que envolve a Cinemática? Deve estar explícita essa percentagem de importância sobre um tema que não faz parte das aprendizagens essenciais de Matemática? Ou a avaliação deve centrar-se apenas no que a cada uma das disciplinas diz respeito? É confuso, não é?

Mesmo que os itens dos instrumentos de avaliação se limitassem à própria disciplina, como proceder em itens que integram diversos domínios ou tópicos?

A esmagadora maioria dos leitores já terá frequentado o 9.º ano de escolaridade, pelo que talvez se lembre de problemas que mobilizam conhecimentos sobre muitos tópicos estudados naquele ano ou em anos anteriores.

Por exemplo, quando um aluno do 9.º ano está a resolver um problema de Geometria, frequentemente tem de aplicar conhecimentos sobre adição, subtração, multiplicação ou divisão, operações estas que podem envolver números inteiros, números racionais ou números reais, conhecimentos sobre paralelismo e perpendicularidade, sobre propriedades dos triângulos, sobre operações de adição ou multiplicação de polinómios, sobre resolução de equações de primeiro ou de segundo grau, sobre unidades de medida… e não estico mais para não ter de escrever boa parte das aprendizagens essenciais do 1.º ao 9.º ano. O que fazer? Como fazer? Indicaremos ao lado do item que a cotação do mesmo envolve 4% para adição de naturais, 5% para transformação de unidades de medida, 16% para a subtração de racionais, 15% para as propriedades dos triângulos, 14% para os conhecimentos sobre paralelismo e perpendicularidade, 29% para a multiplicação de polinómios (que acaba por envolver a adição) e 17% para a resolução de uma equação do segundo grau? Será que isto apenas adiciona horas de trabalho docente, sem reflexo pedagógico, ou consubstancia alguma melhoria? Será que, deste modo, o aluno vai concentrar-se um pouco mais na multiplicação de polinómios e na resolução das equações de segundo grau? Quem é que acredita nisto? Só por crendice.

E se pensarmos em problemas do 12.º ano? Quantos tópicos poderá envolver um só item? Será possível, no 12.º ano, construir um item de um só tópico? Não, não é possível. Antes de mais, o aluno tem de conhecer as letras do nosso abecedário, saber combiná-las para formar palavras, dominar a semântica, reconhecer o efeito dos sinais de pontuação, … ai Jesus, que eu não consigo escrever a lista de todos os conhecimentos que são necessários enumerar para resolver o item.

Também, do relatório inspetivo, sobressai a necessidade de «promover oportunidades de autoavaliação e autorregulação das aprendizagens» e que é fundamental privilegiar «um feedback de qualidade, centrado na tarefa e descritivo, que acompanhe e ajude a melhoria das aprendizagens, que induza os alunos a pensar o seu desempenho e dos seus pares». Excelente (fora a parte de os alunos andarem a bisbilhotar o desempenho dos seus pares. Desconfio que a Comissão de Proteção de Dados não o irá autorizar).

Vamos lá operacionalizar isto.

De cada vez que cada um dos 129 alunos da professora Joana resolve um item, ela vai escrever 129 pequenos textos que ajudem cada um dos seus alunos a perceber se cumpriu a tarefa com sucesso, se a cumpriu com algum sucesso, se tem de se esforçar e estudar um pouco mais ou se está completamente perdido relativamente àquele assunto, tudo isto acompanhado pelos respetivos smiles, desde a boca com a concavidade voltada para cima e os olhos a brilhar até ao esgar mais furioso, com os dentes a ranger, passando pelo estimulante piscar de olho, já que os coraçõezinhos não serão apropriados na relação professora-aluno.

Imaginando que a correção minuciosa da tarefa, a produção do pequeno texto descritivo e a busca do smile apropriado pode levar uns 15 minutos por item, que um teste de avaliação pode ter dúzia e meia de itens, que se fazem vários testes de avaliação por ano, nunca menos de meia dúzia (mas que, segundo as orientações superiores, devem ser muitos e frequentes), não sobra tempo para a senhora professora Joana escovar os dentes.

«É só fazer as contas», lembrando a frase célebre de um apaixonado pela educação. Contando só com meia dúzia de testes por ano, dá 497,5 dias. Mais o tempo que se despende na escola, com a componente letiva e não letiva (24 horas por semana), mais o tempo de preparação das mesmas, contando também com as reuniões de departamento, de conselho de turma, do grupo de docentes da Educação para a Cidadania, da Flexibilidade Curricular, etc., adicionando dois dias de descanso por cada cinco dias de trabalho e ainda um mês de férias, ficamos com 1017,4 dias por ano ocupados. Ainda se queixam, senhoras professoras e senhores professores? Se se sentirem esmagados, vão viver para Júpiter, onde o ano são 4332 dias terrestres ou 10 609 dias jupiterianos. Ficam com muitos dias de sobra, para passear, ler, estudar, visitar exposições, assistir a espetáculos & Ca. … se lá os houver.

Em suma, o que durante séculos bastou para os alunos compreenderem em que nível se situava o seu desempenho, que era o feedback constante dado no decorrer das aulas e a nota atribuída pelo professor nos instrumentos de avaliação, agora não é suficiente. Vossas Excelências consideram que os atuais alunos, que andam muito distraídos com as “redes”, não conseguem compreender o que é um 31%, depois de, insistentemente, o professor o chamar à atenção para o fraco desempenho nas aulas. Talvez haja alguns para os quais 31% é suficiente. Então, cabe ao professor explicar, bem explicadinho e por escrito, que 31% é um nível insatisfatório, que o aluno tem de estar com mais atenção nas aulas, sem telemóvel, que tem de praticar mais, que deve trazer sempre o manual e o caderno diário, caneta, lápis e borracha, em vez de, como já aconteceu várias vezes, aparecer de mãos a abanar, pedir uma folha solta ao colega do lado, e ficar à espera que alguém tome a iniciativa de lhe emprestar uma esferográfica (se é que pretende escrever alguma coisa).

É verdade que, se compararmos com os alunos de há umas décadas, nota-se alguma quebra na capacidade de concentração, mas, apesar disso, todo o aluno compreende o feedback que o professor lhe vai dando nas aulas e sabe bem quando é que conseguiu resolver com sucesso as tarefas propostas, quando esteve perto e quando esteve longe de o conseguir. Será que se imagina que, para os alunos que revelam fracos desempenhos, resultará melhor um pequeno texto escrito do que a intervenção direta, no momento, que se faz no decurso de grande parte das aulas? Não será mais expectável que os alunos que se encontram nessas circunstâncias nem se deem ao trabalho de ler as sínteses, quanto mais de refletir sobre as mesmas? A experiência que tenho e que partilho com os meus pares, grande parte de nós a caminho das quatro décadas de ensino, é que o feedback habitual tem maior qualidade do que aquele que nos é proposto.

A Educação sofre de uma moléstia grave. Os pensadores da Educação (a maioria dos quais Parol.edu.conça, que, estando a libertar-se do condicionamento da «geringonça», vai tentando transformar-se em Parol.edu.mando) gostam de mudar, de alterar, pois a evolução faz-se de mudança (grande Camões: Todo o mundo é composto de mudança, / Tomando sempre novas qualidades.). Contudo, alterar é diferente de evoluir. Veja-se o que está a acontecer na Ucrânia. Quem dirá que a alteração é uma evolução? (Há sempre alguém que diz… sim).

Alterar é mudar o que se tem. Evoluir é substituir o que existe por algo melhor, mais satisfatório.

A inspeção foi à Escola e, sendo certo que teve o contributo positivo de motivar reflexão sobre procedimentos, a súmula, contrariando o lema do meu amigo, não é favorável. Os Senhores Inspetores vendem uma cartilha conotada com as “eduquices” que têm causado enorme erosão na apetência pela profissão docente. Ser professor é uma profissão excecional, os professores, mais agora do que antes, são resilientes perante as frequentes adversidades relacionadas com a indisciplina e as faltas de respeito, e a larga maioria resiste. Todavia, os professores não são deuses, não têm o dom da ubiquidade. Precisamos de professores com qualidade, atentos e disponíveis, não podemos escravizá-los, deixá-los exangues pelo afogamento em excesso de dados intratáveis.

Senhor Inspetor, precisamos de algo exequível, de algo melhor, que seja mais satisfatório, se o houver. Mudar por mudar, ainda por cima se é inexequível, logo pior… então é melhor manter.