Há dois pontos que expõem, sem margem para dúvidas, o fanatismo estrutural da lei da ideologia de género nas escolas que a Assembleia da República aprovou. O primeiro é a afirmada crença no “sexo atribuído à nascença”, ofensa grosseira ao saber e conhecimento que deve ser o espírito da escola. Falar em “sexo atribuído à nascença” é obscurantismo puro e duro. Na melhor abordagem, uma fantasia tão ridícula como as falas antigas que, por pudor, diziam às crianças de tenra idade que os bebés “vêm de Paris” ou “no bico de uma cegonha”. A Assembleia da República, ao votar isto, põe-se ao nível do infantário, numa leitura benigna, ou de um burlão encartado, em leitura directa.
O outro ponto é a alegação de a lei pretender assegurar a devida protecção de “um grupo muito pequeno de crianças e jovens” – a deputada socialista Isabel Moreira dixit, como já referi noutro texto. A mesma ideia foi afirmada pelo líder parlamentar do PS: a “legislação procura proteger menores que devem ver preservado o seu espaço”, “pessoas, cidadãos, famílias que precisam de facto de um tratamento especial”, em razão de perturbação da identidade de género.
Porém, se fosse realmente assim, esta legislação não seria precisa para nada: um instrumento normativo mais simples instruiria os directores das escolas a receberem as comunicações dos pais de crianças com este problema especial e para tomarem as providências adequadas ao seu cuidado, como é devido nos casos especiais. O Ministério da Educação, se necessário, poderia dispor de uma pequena unidade de aconselhamento para apoiar as escolas que o pedissem. E tudo se definiria calmamente, em concreto, entre gente adulta do lado das famílias e das escolas nos casos que ocorressem, actuando cada escola com profissionalismo, pedagogia e solicitude, como se espera. Nada de muito extraordinário. Atender menos de 200 casos individuais, num total de 1,6 milhões de alunos, não exige uma legislação avassaladora como esta.
É aqui que se evidencia o ardil da lei: as crianças com problemas são o pretexto útil para um reordenamento maior. Desde logo, não são vistas como crianças com perturbação da identidade de género – isso seria demasiado banal para a alta cavalaria da lei. A fraude do “sexo atribuído à nascença” alavanca a pregação da “autodeterminação de género”: nós não somos o que somos, mas seremos tudo o que quisermos ser. Assim, pode explicar-se a estas crianças que não têm qualquer “problema”, nem “perturbação”, mas exercem a sua “autodeterminação” em gesta triunfal.
Esta mesma soberba é semeada abundantemente na rede escolar. O objecto verdadeiro da lei não está, por isso, nas crianças necessitadas (com “perturbação da identidade de género”), mas naquelas que, nunca tendo manifestado qualquer “perturbação”, venham a aparecer a declarar-se em “transição de género”. Uma, duas ou três crianças que, sem problemas anteriores, surjam a querer mudar de género (e talvez de sexo) são o supremo triunfo cobiçado pela doutrina extremista e lunática da “autodeterminação de género” e por seus mentores. A “autodeterminação” exige quem a reclame – ou acaba.
É assim que se compreende a montagem deste complexo, pesado e desproporcionado aparelho legal para promover a autodeterminação de género em todas as escolas do país. Vejamos.
A lei diz: “Considerando a necessidade de garantir o exercício do direito das crianças e jovens à autodeterminação da identidade e expressão de género e do direito à proteção das suas características sexuais, e no respeito pela singularidade de cada criança e jovem, as escolas devem adoptar medidas” administrativas de prevenção e promoção da não discriminação, de detecção e intervenção, de protecção adequada e de formação dirigida. Como se vê, não se trata de acorrer a casos individuais que surjam e nas escolas em que surjam. Trata-se de despejar sobre todas as escolas a mentira do “sexo atribuído à nascença” e a ideologia da “autodeterminação”.
A lei diz: “Para efeitos de prevenção e combate contra a discriminação em função da identidade e expressão de género em meio escolar, as escolas desenvolvem, entre outras,” ações de informação e sensibilização, mecanismos de disponibilização de informação e garantias da autonomia, privacidade e autodeterminação. Mais do que cuidar dos casos pessoais que se manifestem e nas escolas em que ocorram, trata-se de, antecipando-os como pretexto, generalizar a todas as escolas a pregação delirante do género à vontade do freguês.
A lei diz: “As escolas devem definir canais de comunicação e detecção, identificando o responsável ou responsáveis na escola a quem pode ser comunicada a situação de crianças e jovens que manifestem uma identidade ou expressão de género que não corresponde ao sexo atribuído à nascença.” Esta tentacular burocracia do género não se limita às escolas onde haja situações individuais a cuidar, mas estende-se obrigatoriamente a todas as escolas do pré-escolar, do básico e do secundário.
A lei prevê: “Promoção [em todas as escolas sem excepção] de ações de informação e sensibilização, sempre que possível em articulação com organizações de promoção dos direitos das pessoas LGBTI+, dirigidas às crianças e jovens e alargadas a outros membros da comunidade escolar, incluindo pais ou encarregados de educação, tendo em vista garantir que a escola seja um espaço de liberdade e respeito, livre de qualquer pressão, agressão ou discriminação.” Esta é a alameda aberta à doutrinação da ideologia de género em todas as escolas, esquecendo qualquer preocupação com casos concretos e mostrando o propósito da lei: propagandear.
As “organizações LGBTI+” gozam da liberdade comum no espaço público, como qualquer unidade da sociedade civil. Mas é completamente abusivo criar-lhes por lei o direito de acesso privilegiado ao interior das escolas, que devem, ao contrário, ser um espaço reservado para a educação, protegidas da propaganda, manipulação e doutrinação por quem quer que seja: partidos, grupos de pressão, seitas, o que for. Esta previsão da lei, ao investir as “organizações LGBTI+” num privilégio ímpar e inapropriado, é uma clara violação e afronta à Constituição (artigo 43.º, n.º 2).
Estas organizações, cavalgando o direito que a lei lhes confere, poderão apresentar-se, a qualquer altura, em qualquer escola do pré-escolar, ou dos 1.º, 2.º ou 3.º ciclos do básico, ou do secundário, para realizar as “ações de informação e sensibilização” legalmente previstas, no quadro de uma absurda e perversa sexualização precoce das crianças. Se as escolas reagirem, as “organizações LGBTI+” têm a lei a seu favor. Este é o teste de algodão de uma lei fanática e extremista: além de violar a Constituição, a lei toma o partido das “organizações LGBTI+” sobre as escolas. A expressão “sempre que possível”, colocada propositadamente na lei, tem o efeito de instalar as “organizações LGBTI+” em posição de preponderância quanto às “ações de informação e sensibilização” dentro das escolas. E, seja como for, com ou sem o concurso destas entidades exteriores, todas as escolas de Portugal, sejam públicas ou privadas, com crianças e jovens dos 3 aos 5 anos, dos 6 aos 9 anos, dos 10 e 11 anos, dos 12 aos 14 anos, dos 15 aos 17 anos, no total de cerca de 1,6 milhões de alunos, ficam obrigadas, por esta lei, a realizar, contínua e regularmente, as tais “ações de informação e sensibilização” no espaço escolar. Isto é razoável? Isto tem justificação admissível?
Este zelo impositivo releva, é claro, da mentalidade dos que olham a escola como um redil onde as crianças estão a jeito e à mão para lhes formatar a cabeça com ideologias de ocasião. Autoritários, confundem escola com campo de reeducação e vêem, em especial, a escola pública como seu quintal. Mas eu nem falava disto. Há alguma justificação aceitável para aquele delírio?
É preciso parar isto.
Discursando na Assembleia, a deputada Isabel Moreira afirmou colocar-se no plano dos “direitos humanos” e “direitos fundamentais”, terminando em glória: “Aqui, não deixamos mesmo ninguém para trás!” Infelizmente, não é verdade. A lei não só é susceptível de deixar para trás, como aponta a atropelar radicalmente os direitos humanos de entre 3 a 5 milhões de pessoas: os 1,6 milhões de alunos das nossas escolas e os seus pais.
Invocando a protecção de “um grupo muito pequeno” de crianças e jovens e a articulação com os respectivos pais (que têm esse direito), a lei, possuída de febre ideológica, monta um sistema enorme, invasivo, desproporcionado, que despreza e ofende os direitos fundamentais dos pais de todas as outras crianças e destas crianças também. Basta ler, por exemplo, a Convenção sobre os Direitos da Criança e as normas constitucionais que regulam a liberdade de educação e reconhecem o primado dos pais na educação dos filhos, para tomarmos consciência do grau muito elevado em que esta lei as viola grosseiramente.
Sim, esta lei ofende os direitos fundamentais da escola e das famílias: despreza e deixa para trás muita gente, milhões de portugueses. É uma lei dirigista e autoritária, que se senta em cima da autonomia pedagógica das escolas e da sua própria regência – todas as escolas públicas e também todas as privadas. Semeia mais carga e perturbação no funcionamento das escolas, podendo tornar-se em mais um quebra-cabeças para seus directores, docentes e funcionários. É uma lei que não quer saber dos mais elementares direitos das famílias quanto à educação dos seus filhos, com excepção das que têm crianças com perturbação de género. Não quer saber de direitos humanos, nem de direitos fundamentais, quer servir e impor uma ideologia.
Este é, nesta legislatura, o último legado do Partido Socialista contra a escola e contra a família. Uma lástima. Para defesa dos direitos humanos e respeito dos direitos fundamentais, é importante que a lei seja objecto de fiscalização prévia pelo Tribunal Constitucional e este a declare inconstitucional. E há também matéria e histórico suficientes para ser vetada pelo Presidente da República. É confrangedor ver o grau de iliteracia política a que se chegou em Portugal, quanto aos contributos do humanismo personalista em diferentes passagens da nossa Constituição. Pela pessoa humana, sua dignidade e integridade, importa travar e revogar esta lei iníqua, uma lei impostora.