O liberalismo, enquanto ideia de governo, impôs-se na Europa após as guerras napoleónicas. A legitimidade do poder deixara de estar no monarca e passou a fundamentar-se nos cidadãos. Sem rei, a separação de poderes e a instituição de uma democracia parlamentar foram as formas encontradas para que o Estado servisse os cidadãos e não os esmagasse. Foi também um modo de se manter a ordem e a segurança. De início, a democracia parlamentar era débil e variava de país para país mas, com tempo, mostrou-se capaz de evoluir e estendeu-se a todos.

A evolução não foi apenas política. Foi também económica e, mais tarde, social. Como explica Edmund Fawcett (‘Liberalism, the Life of an Idea’) os liberais, ao contrário dos conservadores, acreditavam no progresso económico como modo de a sociedade evoluir e de as próprias pessoas se completarem e atingirem as suas potencialidades. Sem progresso, a pessoa humana não se completava e, numa perspectiva cristã, não chegava a Deus. Para os liberais, este progresso político, económico, social e humano seria gradual e não revolucionário. Neste ponto, distinguiam-se dos socialistas de então (cujos resquícios ainda existem no BE, no PCP) que também acreditavam no progresso, mas consideravam que este seria alcançado, não de forma gradual e pacífica, mas através da revolução e da construção de uma nova sociedade.

Foi esta perspectiva de evolução gradual que permitiu ao liberalismo adaptar-se aos novos tempos e alargar o conceito de democracia. Também lhe permitiu ver no Estado a entidade capaz de exercer o poder com a legitimidade que já não residia no monarca, mas no cidadão, no indivíduo. Essa capacidade foi essencial, pois foi o alargamento dos direitos sociais e a inclusão das minorias que deu força moral ao liberalismo para que vencesse a ameaça das ditaduras totalitárias na primeira metade do século XX. Foi também essa versatilidade, própria de uma ideia e não de uma ideologia, que criou condições para que o liberalismo ainda hoje seja discutido. E, num período de crise da democracia liberal, como é aquele que atravessamos, é dessa constante capacidade de adaptação que virá a força de resposta ao populismo tão em voga hoje em dia.

Decidi escrever sobre este tema após ter lido a crónica de Jaime Nogueira Pinto de ontem, e com quem estou perfeitamente de acordo quando diz que “as questões que dividem Direita e Esquerda são hoje essencialmente políticas e de ordem ética e moral” e não meramente económicas. Mas há dois aspectos que devem ser tidos em conta nesta análise. Primeiro, a própria dicotomia Esquerda/Direita, a que Jaime Nogueira Ponto se refere, está marcada pela cenário político saído da oposição ao Estado Novo e da revolução 1974-76. Uma distinção simplista que coloca de um lado a direita que, quando com preocupações sociais, assume as vestes de social-democrata, democrata-cristã ou populista de direita, e do outro a esquerda que vai do socialismo moderado ao extremismo comunista. Nesta divisão não houve, e continua a não existir, lugar para a ideia liberal de governo. Ora, essa ideia pode assumir um cariz mais conservador ou mais social, consoante o posicionamento político dos seus defensores. Isto significa a possibilidade de qualquer deles admitir preocupações de carácter social, adoptar uma visão política e de ordem ética e moral independente do conceito económico, mas dentro de uma concepção liberal e não marxista. E este é o segundo aspecto que quero salientar: o liberalismo, quando surgiu, foi muito mais do que económico. Adam Smith, que a visão marxista tentou reduzir à figura de ideólogo no pólo oposto ao de Karl Marx, foi muito mais que um economista, mas um filósofo, um moralista que queria perceber como funcionava a sociedade, como funcionava a mente humana, como esta reagia perante a adversidade e sobre a sua capacidade de encarar os desafios como oportunidades. Foi através do estudo da natureza humana, da sua sociabilidade que Smith entendeu que a liberdade económica assumia um padrão moral porque estava mais de acordo com a própria natureza dos homens. Nem a sua obra mais conhecida, ‘A Riqueza das Nações’, se reduz a um carácter económico, mas antes faz depender qualquer análise nessa área no conhecimento da história, da filosofia e das próprias ciências naturais, como a biologia. O seu campo de análise e estudo é de tal modo vasto que a redução marxista de Adam Smith a um economista foi tão redutora como a amputação da ideia liberal do seu panorama social, humano, ético e histórico.

A visão do liberalismo como uma ideologia dogmática a favor dos fortes contra os fracos, de protecção dos ricos contra os pobres é uma caricatura, em Portugal explorada pelo Estado Novo e copiada pelo socialismo saído do PREC. Não é verdadeira, como facilmente se comprova com uma breve leitura do que são os partidos liberais por essa Europa fora. É, aliás, interessante analisar como, 50 anos depois do 25 de Abril de 1974, Portugal novamente se fechou em dogmas cujo único resultado é o fechar de olhos ao que passa nos países mais ricos e desenvolvidos. Assim, um liberal pode defender políticas de cariz social, mas fá-lo com dois cuidados: primeiro, sem que coloquem em causa a sustentabilidade financeira do próprio Estado e, mais importante ainda, a dos cidadãos que não devem ficar afogados em impostos. Segundo e mais importante, as políticas sociais não devem aprisionar ao Estado os cidadãos que precisam de apoios. Pelo contrário, o objectivo político deve ser o de, através de políticas de um crescimento e desenvolvimento económico sustentável, tornar possível a cada um completar-se enquanto pessoa humana, num percurso pessoal que cada um conhece melhor qual deve ser o seu.

Ultrapassar este preconceito político é meio caminho andado para que, dentro de uns anos, a maioria dos partidos políticos portugueses deixe de se definir como socialista, social-democrata, democrata-cristão ou populista de direita e se apresente como liberal, abarcando consigo uma das várias tendências políticas que a ideia de liberalismo permite, sejam estas social, ecológica, conservadora ou de teor mais económico. Se tal vier acontecer, não tenhamos dúvidas que este passo significaria um importante avanço no sentido da evolução das instituições políticas portuguesas.

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