Uma pequena notícia corre o risco de ter passado despercebida nestes últimos dias de intensa actividade do até agora tão discreto Ministério da Cultura. Não falo das críticas à actuação dos deputados na comissão parlamentar de inquérito à TAP. Nem da recusa em apresentar as desculpas pedidas pelo presidente dessa mesma comissão. Nem dos conselhos do ministro ex-comentador aos comentadores sobre como se deve ou não comentar. Nem sequer da comparação dos deputados com personagens de cinema, depois de ele mesmo ter escolhido subir ao palco num concerto de Maria Bethânia como circunstância adequada para a condecorar (correndo o risco de alguém pensar, sabe-se lá, que também ele procura algum protagonismo “artístico”). Não falo tampouco de o Ministério da Cultura ter servido, nos últimos dias, de pronto-socorro de outras tutelas, porventura numa curiosa interpretação do nome do palácio onde se encontra instalado. Falo do anúncio feito pelo ministro da Cultura da implementação, ainda este ano, de um cheque-livro que permitirá a todos os que completam 18 anos em 2023 adquirir um livro à escolha, numa livraria “física”.
Ora, não sei quanto ao estimado leitor, mas eu estou desiludido. Estou desiludido, em primeiro lugar, porque ainda sou do tempo em que o PS dava mais importância aos livros. De quando os amigos de José Sócrates davam dinheiro uns aos outros para comprarem 14 livros – num dia! É verdade que, toldadas pela gratidão, estas pessoas gastaram o dinheiro todo em 14 exemplares do mesmo livro, por coincidência, de José Sócrates, mas era um princípio. Uma entrada no mundo da leitura, uma “experiência da escolha e compra de um livro”. E, já que esse ex-primeiro-ministro tem tantos amigos ainda neste governo, não imaginei que se perdesse assim, tão depressa, tão friamente, aquela paixão pela palavra impressa. Que se cortassem gastos nas terceiras pontes sobre o Tejo, nas tentativas de compra de órgãos de comunicação social e bancos privados, nas auto-estradas duplicadas, sim; não nos livros, essa extravagância.
Em segundo lugar, estou desiludido porque, quando primeiro se aventou a hipótese deste “cheque”, se falou num valor de 100 euros por cada jovem e, agora, já vamos num “voucher” para trocar por um só livro, de valor a divulgar “na sua altura”. Ora, em França, por exemplo, o governo atribui um passe de 500 euros a cada jovem para gastar nos bens culturais que entender. Bem sei que França é outro campeonato, mas convenhamos que, de 500 euros, para “um livro”, vai um banho de realidade bem gelado acerca do estado miserável a que chegámos, depois de anos de “convergência” com a Europa que, hoje, roçam a memória arqueológica.
Mas estou desiludido ainda por uma terceira razão. É que, depois de terem pedido 320 euros a cada português para “salvar” a TAP, 340 para o Novo Banco, 1500 para resgatar bancos em geral, e 882 euros e 50 cêntimos, só em 2022, em impostos a mais do que no ano anterior, quando a receita fiscal já tinha batido todos os recordes, eu esperava que tivesse sobrado dinheiro para um bocadinho mais do que um livro. Para cada jovem de 18 anos, atenção. Não para os de 17 nem para os 16, 15, 14, 13, nada.
Podemos olhar para esta medida como tendo tido, algures, na origem, uma boa intenção? Podemos. Mas também a podemos olhar por aquilo em que se prepara para realmente efectivar: uma inutilidade propagandística. Não é aos 18 anos que as pessoas tomam contacto com os livros; é muito antes. E, felizmente, ainda vivemos num país onde há razoável contacto com esses objectos mágicos ao longo do percurso escolar. Para já não falar das bibliotecas, ou, obviamente, das próprias famílias. Não era preciso vir o Ministério da Cultura salvar-nos com um livro – um – quando as pessoas fizerem 18 anos. Talvez até possa haver um caso ou dois em que esse livro vá ajudar a mudar a vida de um jovem? Claro. Oxalá. Um do grande Milan Kundera, por exemplo, que ontem nos deixou. Afinal, sempre poderá ser um livro a mais que lêem alguns jovens antes de se tornarem assessores e adjuntos do governo. Mas não é para as perfeitas casualidades que se governa; é para o país, para a sociedade, para o futuro, para mudar alguma coisa e não para deixar tudo igual.
Mas esse, temo, é o livro pelo qual se guia o governo de António Costa: o manual de instruções para a perpetuação no poder.