A decisão do presidente Donald Trump de matar o general Qassem Soleimani foi classificada, como muitas outras antes desta, de ser irrefletida e de não ter em conta eventuais consequências. Se é um ato político de eficácia e legitimidade questionáveis, convém enquadrá-lo num conjunto de regularidades – sim, regularidades – da política externa da administração norte-americana. Abaixo, três elementos que explicam a nova racionalidade da Casa Branca.

Reorientação geoestratégica: Quando “rasgou” o acordo de não-proliferação nuclear com o Irão, assinado pelo seu antecessor, Donald Trump foi claro quanto às suas razões. Em primeiro lugar, a sua conhecida desconfiança relativamente à eficácia de acordos multilaterais. Em segundo lugar, porque o acordo não impedia – e não podia impedir, de resto – a expansão regional do Irão, que tem vindo a crescer exponencialmente desde que as forças norte-americanas invadiram o Iraque em 2003, e o seu papel como agente desestabilizador da região. E estas, de acordo com a administração, eram as verdadeiras ameaças colocadas por Teerão. Em terceiro lugar, e devido à visão desencadeada pelas duas razões anteriores, a estratégia de contenção levada a cabo por Barack Obama não estava a resultar. O Irão constituía uma ameaça existencial para os aliados dos Estados Unidos e uma ameaça à segurança nacional norte-americana. Assim, desde o início da presidência, e com o apoio dos generais que compuseram a sua administração, Trump entendeu que o Irão era “inimigo” dos Estados Unidos, que a expansão da sua influência na região era inaceitável, e que, em conjunto com estados com os quais reforçou alianças – a Arábia Saudita, Israel e o Egipto –, estava determinado a transformar a estratégia de contenção de Barack Obama em estratégia de dissuasão de Donald Trump.

O uso da força: Uma estratégia de dissuasão consiste essencialmente numa crescente intimidação do inimigo de forma a persuadi-lo a comportar-se de acordo com os interesses norte-americanos. Donald Trump tem usado esta fórmula com grande frequência.

Por um lado, como explicam os autores Ivo Daalder e James Lindsay, o presidente está convencido que os rivais dos Estados Unidos deixaram de respeitar – talvez a melhor expressão seja deixaram de “temer” – Washington. Obama era demasiado brando, o que custou aos EUA uma perda abrupta de prestígio internacional, fator que levou a que os rivais aproveitassem esta oportunidade para expandir o seu poder regional.

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Trump quer assegurar que isso não volta a acontecer. A forma de inverter esta tendência, pensa esta administração, é usar a força militar antes de esgotar todos os outros recursos. Foi assim na Síria, no ataque punitivo ao regime de Bashar Al-Assad por uso de armas químicas contra a população; foi assim na Coreia do Norte, quando Kim Jong-Un mandou fazer testes nucleares com mísseis de longo alcance; foi assim no Irão, em retaliação a um conjunto de provocações (abate de drone norte-americano, ataques a petroleiros norueguês e japonês, a uma infraestrutura petrolífera na Arábia Saudita e à base militar de Kirkuk) que culminaram na invasão da embaixada americana em Bagdad por manifestantes pró-iranianos, um ato com o potencial de acordar os fantasmas de 1979 (sem esquecer Bengasi, onde foi morto o embaixador em 2012).

Com a morte de Soleimani, a administração norte-americana mandou um sinal aos seus inimigos – os EUA não estão dispostos a tolerar comportamentos internacionais que ponham em questão a sua segurança e dos seus cidadãos no estrangeiro – e aos seus rivais – Washington está de volta à competição internacional e têm vontade política de se bater pelo seu interesse nacional.

Uma nova legitimidade: Uma competição internacional aberta, em que cada estado poderoso defende o seu interesse nacional, exige uma nova forma de legitimidade. Deixa de haver espaço para gentilezas liberais, impostas no passado, ironicamente, pelos próprios Estados Unidos. Assim, os assassinatos seletivos levados a cabo por democracias liberais deixam de ser uma exceção.

Num mundo em que predomina a rivalidade entre os Estados Unidos (de política externa pós-democrática), a China e a Rússia autocráticas, há linhas vermelhas de comportamento internacional que deixaram de existir. Vamos assistir, cada vez com mais frequência, a episódios como este. Em que as grandes potências se sentem legitimadas para a usar a força como forma de fazer política por outros meios e a usar métodos considerados próprios de potências desrespeitadoras de direitos humanos. O Irão e os Estados Unidos mostraram-nos, de forma contendente, como é o mundo quando se fecham os parênteses da afinal curta ordem liberal internacional.