Hoje não orientamos os nossos filhos sem cinema: os filmes que vemos com eles, os filmes que não queremos que eles vejam, os filmes que queremos que eles vejam, os filmes que vemos e eles ainda não, os filmes que eles vêem e preferimos que não vissem, e por aí fora. Agora que o nosso mais novo tem 12 e a mais velha 18, cada vez fica mais difícil a terceira modalidade, de os ganhar para o cinema que nos parece certo (estão na fase em que se sentem desprestigiados por seguirem os conselhos dos pais). Ainda assim, não tenho desistido de aliciar os rapazes para realizadores como o Walter Hill. E passo a mencionar apenas três dos filmes dele, também reconhecendo que ao longo das décadas não manteve a qualidade mais regular.
Do “Deliverance” (o “Fim-de-Semana Alucinante” no título português tão deturpado quanto inesquecível), que os meus miúdos ainda não têm idade para ver, ao “Warriors” (um must dos rapazes da casa Cavaco), passando pelo “Southern Comfort” (que visto depois de termos aterrado em Nova Orleães e percorrido uma highway ao lado dos bayous ganha outro impacto), os filmes do Walter Hill mostram homens apanhados num país que os quer devorar, curiosamente, através de outros homens. Nesse sentido, Hill continuou a filmar westerns depois dos westerns terem praticamente acabado. Até quando a história é acerca de um conflito global de gangs na sobrepopulada Nova Iorque do final dos anos setenta, no caso do “Warriors”, é de uma coboiada que se trata.
O chamado Western é o cinema que existe quando pertenceres a um país não é garantia de coisa nenhuma, pelo contrário. E foi também assim que os Estados Unidos lançaram na imaginação dos rapazes do Século XX a melhor literatura visual a que podiam ter acesso. Até no improvável Portugal, tão mas tão diferente das planícies americanas, quem não sonhou na infância ser cowboy? Claro que o cenário não dava para reproduzir aqui mas mesmo assim não desistíamos de brincar a sermos pistoleiros, cidadãos de uma terra a que tínhamos de sobreviver ou então estávamos feitos. Fosse porque vinha um índio, fosse porque vinha um deserto, fosse porque o faroeste na sua periculosidade múltipla acabaria connosco em menos de nada.
Apesar de termos amado a América em crianças, odiamo-la estupidamente em adultos. Vindos dessa mudança sentimental tão abrupta, nós, portugueses no particular e europeus no geral, somos pequenos mal envelhecidos. Acerca dos americanos acabamos a dizer em voz alta o que teríamos medo de pensar acerca de outros de boca calada. Imaginem que as generalizações que fazemos acerca da maioria americana (convenientemente branca, protestante e com mais dinheiro do que nós) eram feitas acerca de pessoas de outros países (nem os russos, mais facilmente vilanizáveis nos dias que correm, atingem o afinco escarnecedor que dedicamos aos americanos). É minha convicção que o ódio ao americano é proporcional ao desejo, hoje recalcado, que no passado tivemos de poder ser um. Isto não é só geopolítica, provavelmente é Freud também.
Confesso que, a seguir a Portugal, os Estados Unidos são o país que mais amo (e, portanto, mais odeio também), logo seguido do Brasil. São os Estados Unidos o país estrangeiro em que passei mais tempo (o que, mesmo assim, não foi nada de especial). Uma das coisas que já compreendi acerca deste país é que, ao contrário daquele onde nasci, não é feito de meninos da mamã. Nós, portugueses, não somos nem melhores nem piores do que os norte-americanos mas somos, quando comparados com eles, meninos da mamã. Eu, como amo a minha mãe, não tenho nessa característica um defeito mas, neste caso, uma diferença substancial dos americanos. Os portugueses são meninos da mamã porque, com fronteiras estáveis há quase nove séculos, têm na sua casa o caminho que deviam fazer fora dela. Sempre que saímos, até que nos safamos. Mas entre o saia de sair, e a saia da mamã, adivinhem qual nos cativa mais.
Acresce a isto a nossa pouco diversa história religiosa. Espiritualmente, entendemos que quanto mais um homem tem fé, menos homem ele é. Como assim? Em Portugal, e noutros países desequilibradamente católicos, ser de Deus é, indo para padre, não ter mulher e não ter filhos. Até na religião, os homens usam saia. Não é casual que um dos padres mais excepcionais da nossa história, o Vieira, vivesse entre estar cá dentro e ser posto fora. O amor da mamã é uma religião mediterranicamente natural e um bom homem é difícil de encontrar (e, encontrando-o, saber o que fazer com ele). Até nos momentos em que os portugueses alegadamente se livram do Catolicismo, teimam numa reserva de misticismo maternal que substitui o velho clero por ateus com fervores utópicos—todos os nossos revolucionários têm tios padres. O padrão do proverbial macho latino sempre andou entre a passividade, em que a educação dos filhos pertence às mulheres, e a porrada, quando o pavio lhe chega ao fim e essa acção lhe é exclusiva. Agora que todos os indícios de porrada se criminalizam, resta-nos a imensa passividade do homem português.
É óbvio que este menino da mamã, que o homem português é, se ressente da besta masculina americana. O americano, afinal, nunca esperou que o seu país lhe fosse mamã. O americano teve, em grande parte, de conquistar constantemente o seu próprio país. É por isso que qualquer Walmart tem prateleira para revistas de armas e sobrevivência: de certo modo, só está naquele país quem prova ser capaz de lhe sobreviver (e por isso tantos estrangeiros que à América chegam mais rapidamente se tornam patriotas do que os próprios americanos—emigrar para a América nunca é apenas emigrar; é poder prosperar só depois de ser provado). Qualquer supermercado é para o americano conforto mas confronto também. O menino da mamã português, escandalizadíssimo pelas diversidades de consumo do outro lado do mar, acusa triplamente o grunho americano.
- Como é que o americano consegue ter Deus ao mesmo tempo que tem mulher? Como é possível ser metafísico sem pudor de ser masculino, e ter líderes religiosos que casam?
- Como é que o americano consegue ter Deus ao mesmo tempo que tem armas? Como é possível não dar à polícia o monopólio da sua defesa, advogando, para isso, a segunda emenda da Constituição do país ao mesmo tempo que se invoca a divindade?
- Como é que o americano consegue ter Deus ao mesmo tempo que tem bolas? Como é possível ser a favor de fazer bebés, sendo “pro-life”, pró-pena de morte e contra o aborto?
“Guns, babies, Jesus”, diziam os cartazes, e os meninos da mamã portugueses entram em síncope. As categorias do grunho americano deixam-nos desmaiados.
Ok, ok. Talvez nem todos os americanos sejam estas bestas que ofendem meninos da mamã portugueses, e talvez nem todos os portugueses sejam meninos da mamã. Existirão excepções e países que hoje não são o que maioritariamente podem ter sido ontem. Infelizmente o que é cada vez menos excepção é a nossa capacidade de ver além das generalizações, que este mesmo texto praticou, para tentar descobrir em quem decide algo tão diferente de nós, alguma vida que seja tão vida como a nossa é. Perdemos todos. Os nascidos e os por nascer.