Os anúncios bombásticos do senhor Zuckerberg já não são novidade. Volta e meia aparece mais um, com resultados que fazem lembrar a alegoria da montanha que pariu um rato. Aconteceu com o Facebook Places, o Facebook Deals, o Messenger Pay, a Libra, o Diem, o WhatsApp Pay e o Facebook Pay, só para referir os que estão mais presentes na memória.
O Facebook enquanto plataforma teve, e tem, um sucesso inquestionável, para além de resultados financeiros admiráveis à custa de uma atitude ética no mínimo discutível. Pois parece que o senhor Zuckerberg quer estender essa sua ética a todos os elementos das nossas vidas, digitais ou não. Bem-vindos ao Metaverse.
A ideia do Metaverse é desenvolver as tecnologias digitais de forma tão apelativa que levará os consumidores a não conseguir evitar a sua utilização no dia-a-dia, em todos os aspetos relacionados com comunicação, desde as redes sociais, aos telefonemas, às reuniões, ou mesmo às compras. Estamos a falar de realidade virtual e de realidade aumentada fazendo parte do nosso dia-a-dia. Será que o Metaverse nos fará confundir a vida com um jogo? Não obstante, este novo sonho do Senhor Zuckerberg não deixa de ser uma criação de valor enorme e irresistível para todo o tipo de consumidores, incluindo as empresas. Mas então porque é um tiro no pé?
O Facebook conseguiu o seu sucesso económico com a exploração da interface entre os consumidores e as empresas, e é por isso que a discussão sobre o controlo de conteúdos e manipulação da perceção vem sempre ao de cima. Na verdade, é uma plataforma que está disposta a (quase) tudo para enriquecer à custa da publicidade, tal como temos vindo a descobrir pelos vários denunciantes, o mais recente dos quais particularmente virulento (Frances Haugen). Aliás, o investimento no Metaverse de 10 milhares de milhões de USD anunciados só para o primeiro ano revelam bem as suas intenções expansionistas.
À primeira vista, o Metaverse parece apenas uma nova roupagem para o Facebook e afins (leia-se Instagram e WhatsApp), o que fará sentido. Pode até acontecer que essa visão integradora tenha sucesso, mas não é esse o tiro no pé. A utopia está na forma como o Metaverse se quer assumir perante as empresas.
O anúncio da nova plataforma foi bastante claro relativamente à fusão entre o mundo virtual e o mundo real, o que inclui naturalmente as empresas. No contexto puramente digital, o Metaverse faz lembrar o Second Life (ver secondlife.com), provavelmente construído em cima de NFTs (Non Fungible Tokens), os quais podem representar todo o tipo de ativos digitais. A decisão sobre se este novo mundo virtual será ou não apelativo caberá aos consumidores. Porém, há vida para além do mundo puramente digital. Será que as empresas do mundo real poderão também comunicar através do Metaverse, utilizando-o para suportar transações comerciais, tal como anunciado?
Na verdade, a integração entre os mundos virtual e real já existe na China na forma de Super App, como é o caso do WeChat ou do AliPay. Nessas Super Apps, os consumidores podem comunicar entre si, e participar em jogos virtuais. Para além disso, os consumidores também podem comunicar com as empresas, fazendo compras, e realizando pagamentos. E o mais interessante é que estamos a falar de todas empresas com porta aberta no mundo real sem exceção, podendo-se, por exemplo, pagar o táxi, um estacionamento, comprar o jornal, ou um par de sapatos, tudo na mesma aplicação. É de facto um modelo de comunicação muito conveniente quando comparado com o do mundo ocidental, onde temos que utilizar aplicações separadas para comunicar com as várias empresas. Sob este ponto de vista, o Metaverse será uma evolução tecnológica muito significativa de um conceito já em vigor na China há cerca de cinco anos.
Porém, as Super Apps não são possíveis no nosso espaço económico, pois isso implicaria, por exemplo, uma forma de pagamento uniforme, tipo monopólio, em todo espaço geográfico. Aliás, monopólios seja do que for está completamente fora de causa nas economias ocidentais (bem basta o panorama resultante do sucesso das Big Techs). Portanto, não é provável que o mundo ocidental aprove regulação que permita sequer o aparecimento de uma Super App. Aliás, o Senhor Zuckerberg tem estado a tentar caminhar nesse sentido com as várias propostas de sistemas de pagamento referidas acima, mas todas elas falharam. Não é, portanto, provável que os tentáculos virtuais no Facebook se estendam ao comércio do dia-a-dia, com Metaverse ou sem ele.
Portanto, o Metaverse acaba por ser apenas uma nova tentativa para conseguir uma integração semelhante a uma Super App, mas com mais conveniência. A ideia seria tornar a proposta de valor tão apelativa para os consumidores, que até a regulação seria obrigada a ceder, deixando o Facebook, na forma de Metaverse, ocupar o monopólio da comunicação, controlando assim as transações que estão na base da própria economia. Não vai acontecer. Bem basta o controlo dos conteúdos já exercido pelo Facebook. E é por isso que o Metaverse é um tiro no pé.