Pois a China anunciou recentemente que vai entrar em testes com a sua criptomoeda, à qual chamam simplesmente de “moeda digital”. Nada que não tivessem vindo a anunciar desde há 3 anos, tendo até referido no verão passado estar prestes a terminar a respetiva blockchain. Por detrás deste sistema estão os gigantes tecnológicos, como o Alibaba e o Tencent.

Mas tem passado praticamente despercebido até agora, o que é perigoso, pois corremos riscos se nos atrasamos. E os riscos são imensos.

Para início de conversa, desta vez, os nossos amigos chineses não têm pejo em anunciar publicamente algo que tenho vindo a partilhar desde há anos com os meus alunos: “A sovereign digital currency provides a functional alternative to the dollar settlement system and blunts the impact of any sanctions or threats of exclusion both at a country and company level”. Então isto não se discute? Será que é um bluff ou um devaneio ligado a uma tecnologia que afinal não passa de um esquema de Ponzi? Mas o risco vai muito para além de o dólar deixar de ser a moeda de referência para comércio internacional, e isso merece uma explicação.

Em primeiro lugar, justifica-se referir que este teste anunciado pela China é bem sério. Será estendido a algumas das maiores cidades e parece envolver um conjunto grande de empresas, incluindo alguns gigantes americanos. O projeto chama-se e-RMB e não é muito diferente do que os chineses já fazem quando utilizam o Alipay ou o WeChat para pagar virtualmente tudo, desde um parque de estacionamento a uma compra em loja. É, aliás, uma vantagem enorme que a China já tem em relação ao Ocidente, pois por cá não há um único sistema de pagamento transversal a todos os países sem passar pelos processadores nacionais ou internacionais (Visa, Mastercard, MB por cá, entre outros). A verdade é que um tal sistema era necessário quando não havia comunicações universais, e também porque o custo da comunicação era muitas vezes superior ao valor da transação. Mas qualquer smartphone é hoje um TPAs seguro, e foi isso que a China aproveitou, sem ter de pagar taxas à Visa e outras redes de pagamento internacionais. Só se pode tentar imaginar porque é que o Ocidente ficou para trás e porque é que o Whatsapp, por exemplo, nunca chegou a avançar com o “roll out” do Whatsapp Pay a nível mundial. Até o Apple Pay não resistiu à tentação de ficar com uma parte das comissões que os comerciantes passaram a aceitar para ter acesso aos pagamentos electrónicos.

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Mas na China não é assim, e o novo ambiente de pagamentos digitais generalizados por smartphone pode agora ser utilizado para dar o passo seguinte, e é isso que é perigoso.

Mas então qual é a diferença entre ter o dinheiro digital numa conta bancária, o dinheiro digital do WeChat ou Alipay, e a versão agora proposta do e-RMB?

A conta bancária é uma forma de gerir dinheiro digital de forma centralizada. O WeChat ou o Alipay são como o Revolut, ou seja, a sua liquidez provém e está refletida nas suas contas bancárias, e o dinheiro só sai se for levantado de alguma forma. O e-RMB vem mudar isso tudo.

Vamos ter de imaginar que acreditamos na infraestrutura tecnológica proposta. Com este pressuposto, transferir moeda para e-RMB, esta passa a ter representação digital na BlockChain aprovada pelo regulador chinês. Sendo “trustless”, passa a ter um potencial económico absolutamente avassalador, e muito maior do que a simples substituição do dólar americano no comércio internacional, como se isso fosse pouco. O e-RMB passa a ser a primeira moeda capaz de participar na tokenização de ativos, algo que hoje podemos fazer, mas apenas recorrendo a criptomoedas tradicionais com a volatilidade que se lhes conhece. Ora o RMB está indexado a uma economia inteira, e não é pequena. Mais do que uma stable coin, o e-RMB é a própria coin. Maravilhoso.

Do ponto de vista da regulação, é extremamente simples: o e-RMB funciona como se fosse uma conta bancária, só que é autónomo, e pode activar Smart Contracts, e tornar um conjunto de activos extremamente líquidos, com profundo impacto económico. O primeiro grupo de activos a tokenizar não será com certeza nenhum que necessite de registos, taxas, escrituras e tudo o mais, se bem que até isso pode vir a mudar. O que podemos fazer hoje é trabalhar com activos como acções que têm o seu paralelo já hoje em sistemas informáticos, nomeadamente no sistema financeiro.

O que me preocupa aqui é que quem pode começar a incrementar esta liquidez económica é a China, e não o mundo ocidental. Se o fizermos, será a proveito do e-RMB. Será que a China se está a preparar para tomar o lugar dos EUA na economia internacional? Qual o impacto na nossa geografia?