Primeiro dia!

No dia a seguir!

No dia em que fisicamente o perdi!

1 Primeiro dia:
Tinham-me dito que era muito melhor partir que ficar. Porque sofria. Via-o sofrer tanto e, quando lhe dava beijinhos dizia-me depois de um bocado, como se tal não fosse possível, “oh Zé”. Tantas vezes lhe sussurrei ao ouvido “Pai, estou aqui, é o Zé, gosto muito de si”. E ele agarrava a minha mão, como se não existissem palavras (e para ele existiam poucas) e juntava-a à sua cara. E beijava-me a mão. Foram tantos dias só assim. Reiteradamente assim. Nesta simplicidade e cumplicidade comunicacional que um pai e um filho que se amam encontraram para se relacionar. Não eram precisas palavras. Não eram precisas mais manifestações. Estar, só estar ali. E sei que ele sorria por dentro para mim. Por dentro sorria muito para mim. E vinha novo dia e novo encontro. E quando me via nada dizia mas, antes, os seus braços levantava sentado na sua cadeira de almofadas. Encontros diários que duraram precisamente um ano e quase meio. Desde a partida da minha mãe. De cada vez que saía, e não o podia ver no fim de semana, ficava a pensar como estaria. O que pensava. Como se sentia. E olhava para o telefone apenas para saber se alguma das cuidadoras teria ligado. Coração apertado.

O meu pai não era de grandes palavras, de grandes afetos, mas era um homem profundamente humano. Eu julgava que ele não era de cá, não vivia por cá. Mas aprendi que uma das suas grandes armas era não me perturbar, não se queixar nunca, aguentar estoicamente sem partilhar, jamais, a sua dor. Preservar-me ao seu sofrimento. Era um lobo solitário tal como eu sou um pouco lobo solitário. Sentia-se assim, na sua solidão, respeitador da minha liberdade de vida. Sempre respeitou essa liberdade, sem intromissões, sem sobressaltos, sem grandes questões, muito menos julgamentos. A sua dor era sua. Sempre me protegeu assim, sempre sem me querer perturbar. Partiu hoje, não sei para onde. Mas sei também hoje que ele era, à sua maneira, um grande herói. O meu super-herói.

Choro-o e hei-de chorá-lo muito. Sempre. Era o meu pai. Era o meu… Adeus pai. Até um dia. Um beijo e um abraço gigantes para a mãe que o espera. Até sempre.

2 No dia a seguir
…Ontem escrevia isto e ao dobrar de uma noite sem dormir, aqui ficam mais umas linhas. Tive que voltar a casa do meu pai. Dos meus pais.

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Para “ver” o meu querido pai mais uma vez sentado na sua cadeira. Uma de duas cadeiras. A levantar os braços e a sorrir para mim quando chegava. A guardar o seu silêncio cúmplice, o seu sorriso interno ao ver-me chegar.

“Então pai, nem um olá?”. “Olá Zé”. “Como está hoje pai?”. Levantava a mão e fazia o seu gesto de mais ou menos sem palavras. “Joãozinho, Joãozinho, voltou a perder a língua!?”.

No fim do nosso encontro dizia sempre “Pai, deite-se cedo, descanse”. Respondia-me “está bem”. Nunca o fazia. Depois dizia-lhe “beijinhos pai, até amanhã. Amanhã este chato volta para o ver”. E ele retorquia sempre “Obrigado pela visita, Zé. Obrigado. Beijinhos”.

Muitas vezes saí daqui sem destino. Como se o chão me fugisse debaixo dos pés. Descia sempre pelas escadas e tantas vezes ao chegar ao R/C já vinha com duas lágrimas nos olhos. E pensava “amanhã, pai, amanhã cá estarei de novo.” Para o nosso bocadinho. Para o acompanhar. Para o ver. Para lhe passar a mão pela cabeça e o pai poder dizer “está a despentear-me”. Como se houvesse ainda cabelo para despentear.

E assim era, dia a dia, para lhe dar mais um bocadinho de alento, mais um bocadinho de conforto e mais um sorriso interno para a sua vida.

Parecia, todos os dias, uma descida aos infernos. Se essa coisa existe já o foi em vida.

3 No dia em que fisicamente o perdi:
E hoje escrevo mais uma linha. Se já estava na casa do Pai passou agora o corpo a cinzas. Fazendo jus ao… “e em pó te hás-de tornar”.  Hoje foi a missa de corpo presente e a cremação.

“Pai, estou sempre aqui para o que precisar. Eu estou aqui e sou o Zé, pai. E não consigo parar de o chorar.”

Voltei à sala de casa dos meus pais, passei a mão pelas cadeiras onde se sentava, revisitando aquela cama articulada que é um bólide de dormir, re-olhando para a cadeirinha de rodas e sentando-me no andarilho, por ali fiquei. Não consigo mesmo deixá-lo partir do meu coração.

“É o Zé, pai. Joãozinho, Joãozinho!”

Nota: Homenagem a todos quantos perderam os seus pais. Agora, ao olhar para cima, vejo-me na primeiríssima linha. É o ciclo da vida. Se há pouco ia com ele votar, na sua cadeirinha de rodas, agora fui com ele para o deixar partir. É um até já. E, como dizia um amigo meu, “nunca nada será como dantes”. Porque dói, e dói muito. E há-de sempre doer.