O escritor italiano de origem judaica Alessandro Piperno dizia que Philip Roth é “o indivíduo que não conheço com quem passei mais tempo em toda a minha vida”. Não sei se posso dizer o mesmo, pois desde que descobri este grande escritor que o leio vagarosamente e com imensa contenção. Passei muitos e muitos dias lendo as suas obras. Mas cada dos seus livros é um tremendo soco no estômago. Começa por nos envolver aos poucos, com a descrição das personagens, com as voltas da história, que parece cronológica e linear, mas se vai completando aqui e ali. Lentamente, Roth vai dando significado à narrativa, explicando o seu contexto e adensando o retrato das personagens. A meio, sempre com uma escrita calma e contida, o sentido de tragédia começa a dominar-nos. Vamos percebendo o conflito gigantesco de todo o romance. Ou as grandes contradições da história. Acabo sempre os seus livros com uma sensação de peso, mas também de esperança. Penso sempre que acabei por perceber mais sobre a vida.

Comecei a ouvir falar de Philip Roth e a interessar-me por ele apenas em 1997, quando publicou “Pastoral Americana” e o seu romance foi recebido com estrondoso aplauso pela crítica norte-americana. Obteve o prémio Pulitzer e foi considerado pela Time um dos 100 livros mais importantes publicados desde o aparecimento da revista, em 1923.

Vivia na altura na área metropolitana de Nova Iorque e muitos dos meus colegas, muitos de cultura hebraica, falavam de Roth como um dos mais extraordinários escritores contemporâneos. Conheciam todos os seus romances e liam-nos à medida que iam aparecendo. Quando comecei a segui-los, embora a um ritmo mais lento, comecei a percebê-los.

A cultura judaica é um pano de fundo de toda a sua obra. Muitas das personagens são hebreus refugiados, ou descendentes de refugiados, como o próprio Roth, que lutam para se integrar na América urbana e suburbana. Newark, a cidade natal de Roth, situada na zona metropolitana de Nova Iorque, as suas avenidas, as suas escolas e as suas lojas são a paisagem dos seus romances.

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Para mim, esta paisagem urbana foi também marcante. Como se sabe, mas é difícil perceber para quem visite hoje a cidade, Newark era um centro urbano próspero, com um porto que rivalizava com o de Manhattan, com indústria pesada e muito comércio. A zona baixa estava semeada de lojas, na sua maioria, ao que se diz, de judeus. A sua Broad Street era uma enorme avenida, pacífica e sofisticada. Um pouco fora do centro ficavam as casas da classe média, como a de Summit Street, em que Roth viveu. Um pouco mais acima, havia ruas muito elegantes, semeadas de mansões.

Depois das revoltas de 1967, em seguida a um episódio de violência policial contra um taxista negro, a baixa de Newark foi destruída e as famílias judaicas e outras de origem europeia largaram a cidade, que entrou num período de destruição, violência, crime, abandono e pobreza.

Um bairro menos visível da cidade, o chamado Ironbound, começou a ser ocupado por emigrantes portugueses, que aí se estabeleceram, com as suas lojas, pastelarias, oficinas e restaurantes. Era uma zona de habitação menos degradada, mas mesmo assim económica, e em frente à estação de comboios, a célebre Penn Station de Newark, ponto de chegada e de partida para o centro de Nova Iorque, para a zona suburbana rica de Nova Jérsia, para a Pensilvânia e, mais longe, para Baltimore e Washington.

Os portugueses revitalizaram o Ironbound e começaram a criar um bairro de gente trabalhadora que, em grande parte, ajudou e continua a ajudar a recuperação de Newark.

A minha ligação com Newark vem, como a de muitos outros portugueses, das idas frequentes ao Ironbound, ao supermercado Seabra, à Marisqueira, ao Talho Lopes e a tantas outras lojas. Atravessei inúmeras vezes a baixa de Newark e zonas menos calmas da cidade. Fui a escolas, trabalhei como orientador de estudantes portugueses em Newark, colaborei com o Clube de Estudantes “Os Lusíadas”, ajudei a organizar sessões públicas no Museu, colaborei na programação cultural do novo “Performing Arts Center”. Trabalhei perto, numa universidade. Foram anos bons.
Ao ler Roth reconhecia a cidade, as ruas, a Biblioteca Pública, o Museu, e imaginava as lojas e a prosperidade passada. Sentia-me vizinho de Philip Roth.

Sentia-me vizinho também na atitude moral perante o fanatismo e a intolerância. O ponto de vista de Roth perante a sua cidade destruída pelos conflitos raciais é paradigmático: não condena a fonte da indignação que cresceu ao ponto de a sua cidade ser destruída, prefere falar da cidade. Nunca há nele uma réstia de racismo, mas há uma tristeza profunda pela intolerância. No seu extraordinário “Casei com um Comunista”, uma das personagens recusa-se a abandonar Newark depois das revoltas e é morta com um tiro na cabeça, gratuitamente disparado por um dos novos habitantes da cidade. No seu igualmente extraordinário “A Mancha Humana” há uma vida destruída pelo extremismo académico intolerante, pelo controlo policiesco das expressões consideradas politicamente incorretas. Mas o leitor verá (é melhor não estragar a surpresa a quem não leu o romance!) a ironia desse controlo ao perceber quem era, afinal, o “manchado” perseguido.

Resta dizer que Roth não é apenas um grande narrador de histórias – essa arte extraordinária que fez de nós humanos, contradizendo o desprezo pós-moderno pelo amor às narrativas, no sentido clássico do termo (não, nem tudo é apenas texto!). Roth é um grande escritor. Ao lê-lo percebe-se que há uma história, mas percebe-se também que há literatura, que há palavras, que há frases, que há parágrafos belos, que por detrás de tudo há o trabalho subtil e meticuloso de um grande artesão da escrita. Lendo-o, ficamos em boa companhia.