Do rol de milagres da esquerda faz parte a transformação das democracias em disseminadoras da censura à liberdade de pensar, dizer, escrever, publicar, votar, decidir, criticar. O segredo residiu na subversão mental do ideal de liberdade. Os seus conteúdos deixaram de ser centrados no pensamento e no indivíduo que se representavam como subjugados pelas instituições tutelares da cultura e do pensamento, das religiosas às laicas, para passarem a ser determinados por certos segmentos sociais que se consideram subjugados pelo poder económico (ou seus representantes, a esquerda caviar) que, pelo seu peso eleitoral nas democracias, passaram a determinar o sentido das instituições em causa.

Além de ter sido descentrado do indivíduo para o coletivo, e do pensamento para a distribuição de rendimentos, o ideal de liberdade foi transfigurado de antónimo em sinónimo do linchamento social do que existe fora desse horizonte mental. Tal milagre civilizacional remeteu a censura da periferia para o âmago das democracias, anulando-a enquanto critério que antes distinguia ditaduras de democracias.

Em Portugal, nem me reporto à supressão de parte das memórias de senso comum do Estado Novo ou à interdição de testemunhos da vida quotidiana que contradigam as teses do «colonialismo» criminoso ou da descolonização exemplar. Limito-me a memórias dos nossos dias.

Quem nega a guerra permanente à dignidade da existência, no espaço público e publicado, de Pedro Passos Coelho apesar de ter ganho duas eleições sucessivas (2011 e 2015)? Claro que, numa democracia, a direita pode existir, mas sem indivíduos como Passos Coelho; ou nos EUA, mas sem indivíduos como Trump; ou no Brasil, mas sem indivíduos como Bolsonaro; sem Orban, Salvini, Le Pen, por aí adiante, uma regressão à barbárie civilizacional. Alguém deu pelas consequências reparadoras do silenciamento por progressistas da Universidade Nova ao professor Jaime Nogueira Pinto? Será possível garantir que a professora Maria de Fátima Bonifácio sobreviveu ao linchamento social progressista? Quem protege a arraia-miúda que todos os dias – onde estuda, trabalha, vive ou convive – arrisca a ostracização como perigosa «fascista» ou «extremista de direita» se ousar criticar os ideais de esquerda além do sussurro, mesmo em tom Zé Cabra ou Maria Leal?

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Não é a crítica à direita que está em causa, até porque esta é a maior responsável pela desproteção de indivíduos e sociedades face ao terrorismo moral esquerdista quando não se assume enquanto direita moral e cívica. A gravidade do fenómeno reside no banimento do espaço público da dignidade de determinadas sensibilidades sociais.

Mesmo que o mundo ocidental vá resistindo à transmutação do caos imposto à mente coletiva em caos social, a volatilidade visível do jogo político só acontece por ancorar na dissolução invisível de instituições fundamentais de regulação da vida social. Conversas habituais de qualquer de nós permitem aferir o afastamento continuado de indivíduos e grupos uns dos outros. Basta que o assunto seja o destino coletivo para percebermos a desagregação de velhos laços afetivos nos nossos círculos familiares ou de amizades, sentimento que se estende às relações de vizinhança, pares profissionais ou vida social em geral.

Sempre ameaçadora, o ciclo atual de erosão da coesão social resulta do colapso do universo mental, moral e intelectual, modelado pela esquerda a partir do controlo hegemónico de instituições-chave: política, ensino, comunicação social, cultura, artes, organizações cívicas nacionais e internacionais, entre outras, que acabaram contaminadas por um profundo descrédito social. Fenómeno idêntico foi tipificado por Freud, em O Mal-Estar na Civilização (1930), diagnóstico da mente coletiva então premonitório da hecatombe que viria a ser, poucos anos depois, a segunda guerra mundial (1939-1945).

Enfrentar crises civilizacionais força sempre ao regresso simbólico ao princípio dos tempos, isto é, à inevitável necessidade cíclica que as sociedades têm de revitalizar os valores morais que sustentam a sua razão de existir. Se o divã serve a mente individual descompensada, a mente coletiva fica confinada à terapia no decurso da vida quotidiana habitual o que implica, obrigatoriamente, a prescrição do reforço da liberdade. Enquanto não for legítimo questionar, no espaço público, o que tomamos por incriticável, garantido ou óbvio, o mal-estar na civilização agravar-se-á.

O propósito da terapia da mente coletiva não é o de criar um mundo novo, uma vez que o mundo já foi criado a partir de primados morais sólidos cuja validade resiste ao tempo dos milénios. Como Jordan Peterson tipifica, o regresso simbólico cíclico ao princípio dos tempos serve para sociedades e civilizações reaprenderem a tornar dogmaticamente claras as fronteiras mentais entre Caos e Ordem, Justo e Injusto, Certo e Errado, Bem e Mal, Autorresponsabilidade e Vitimização, esta última fronteira uma necessidade premente imposta pelas heranças do revolucionário século XX.

Foi porque, no período antecedente, os regimes políticos bloquearam a terapia social através da libertação da liberdade que a segunda guerra mundial aconteceu como aconteceu. Da pós-guerra até hoje, paradoxalmente a mesma sina regressou ao ritmo da crescente hegemonia intelectual, cultural, institucional e social da esquerda, uma tendência que, ao interditar a legitimação de sensibilidades sociais desalinhadas, foi radicalizando as cargas afetivas e emotivas, entre manifestas e latentes. Isso implica, necessariamente, o sacrifício do uso da razão na vida social. Tal descompensação da mente coletiva entre excessos afetivo-emotivos e carências de racionalidade tem tido o concurso gravemente perverso da comunicação social.

A racionalidade – pensar e pesar as consequências a longo prazo antes das decisões – apenas ganha saliência social quando a liberdade de facto conquista dignidade institucional e, a partir dela, dignidade pública. Foi por isso que, em 1917, Max Weber deixou claro que «(…) aquilo que se passa nas salas de aula deve subtrair-se à discussão pública». O sociólogo não detetava outra via institucional que protegesse a liberdade intelectual e a capacidade de racionalizar a vida social, uma vez que tal apenas é possível contra as pressões resultantes das avassaladoras paixões políticas e públicas que remetem as sociedades para os antípodas da racionalidade.

Do pré-escolar ao universitário (e vice-versa), cem anos depois o que caracteriza o ensino é justamente o inverso. Não admira que a mente coletiva, refletida das elites ao senso comum, ande próxima da morte cerebral, o ponto de chegada do século de ouro da esquerda.

Em Portugal, um caso ocidental típico porém radicalizado e retardado, apenas a patologia da mente coletiva explica a ausência de reações morais, intelectuais ou cívicas a evidências empíricas que se prolongam e sobrepõem: uma carga fiscal abusiva (na idade média talvez já se andasse a ferro e fogo) conjugada com uma economia estagnada; serviços públicos que se degradam a olhos vistos (segurança, saúde, educação, justiça, entre outros); episódios recorrentes atentatórios da dignidade coletiva (falência financeira do país, corrupção, incúrias do estado, desregulação de atitudes e comportamentos das famílias às salas de aula); entre outras situações, como a inviabilidade dos princípios que regulam as relações sociais entre a (recalcada) maioria e umas quantas (santificadas) minorias (raciais, étnicas, religiosas, de género, identitárias).

Mas nem o acumular de evidências tão deprimentes ativa o instinto racional mais básico. De políticos a académicos, de intelectuais a artistas, da comunicação social a igrejas, de desportistas a fãs das novas tecnologias, entre outros, não se dá pela existência de vozes que proponham e imponham a necessidade de se trocar o mais possível o fazer pelo pensar, tendo em conta que o primeiro sem o último é sempre garantia de maus resultados e significa rumar na direção contrária à renovação social e civilizacional.

O que define a essência da condição humana, a complexidade do pensamento, está transformado em inimigo da ação política e cívica. Essa desumanização da nossa existência coletiva tem sido alimentada em doses industriais do agitado fazedor Presidente da República a qualquer fazedor Presidente da Junta, como diria Herman José.

Outros tempos e sociedades viram-se forçados a se repensarem a si mesmos por Sócrates, Platão, Santo Agostinho, Copérnico, Galileu, Descartes, Montesquieu, Edmund Burke, Nietzsche, e tantos outros, que acabaram por deixar heranças que projetaram, por séculos, a dignidade da frágil condição humana. Com ou sem vontade, esses tempos e sociedades tiveram de questionar o que até aí tomavam por incriticável, certo, sagrado, dogmático, mas cujos fundamentos morais e intelectuais descobriram ser falaciosos.

Porque o primado da moral determina o resto, em setembro último publiquei um livro que confronta quem o lê com o dilema moral supremo dos nossos dias que, depois, condiciona a orientação intelectual, académica, social, cultural, política, por aí adiante, do nosso tempo e sociedades. A argumentação, sem dúvida discutível, parte de pressupostos morais claros para demarcar, sem ambiguidades, as fronteiras entre a estabilidade e a instabilidade social e política, ou entre a prosperidade e a estagnação ou miséria económicas.

Se um livro com essas ambições cívicas não for capaz de instigar uma discussão pública significativa que nos leve de regresso ao princípio simbólico dos tempos, quer dizer que ainda não será desta que o pântano mental começou a secar. Desde setembro, o livro tem merecido pouco mais do que o silenciamento no grande espaço mediático onde, excecionalmente, uma ou outra cabeça-de-vento o achincalhou sem ler. Claro que ler e debater fora da redoma mental da esquerda é motivo de um alegado pânico social, mas essa é a barreira que alimenta o mal-estar na civilização.

Ainda assim, remeter «Um Século de Escombros» para o lugar do morto talvez nem seja mau. Como o livro não se evaporará, enquanto não surgir uma contra-argumentação convincente o alvo foi atingido: passar a certidão de óbito mental, moral e intelectual, da esquerda. Daí em diante, a reconquista da dignidade humana significa «Pensar o futuro com os valores morais da Direita».