Miguel Morgado assinalou, através de um artigo no Observador, os 800 anos da Magna Carta de 1215. Com a eloquência e a erudição habituais, o autor reitera a tese, acolhida por numerosos historiadores, politólogos e constitucionalistas, segundo a qual a Magna Carta encerra o primeiro vestígio do constitucionalismo, o ponto alfa do governo representativo e da liberdade moderna. A tese associa-se naturalmente a uma narrativa de excepcionalidade cultural, aflorada pelo Miguel, segundo a qual há duas grandes tradições da liberdade moderna, uma com sede insular, a do génio gradualista britânico, e outra com sede continental, a do espírito revolucionário encarnado na guilhotina francesa. Esta concepção amplamente difundida da Magna Carta parece-me anacrónica e, apesar de padecer nesta matéria de uma capitis deminutio pelo facto de não ser historiador, vou cometer a imprudência de escrever umas quantas linhas sobre as razões da minha divergência.
A Magna Carta é um caso exemplar do pacto medieval, cujo sentido era o uma espécie de catarse colectiva obtida através da restauração, após um episódio convulso, da constituição “boa e antiga”. Esta consubstanciava um princípio de ordem estratificada, hierarquizada e naturalizada, uma ordem de relações de dominação entre nobres e comuns, suseranos e vassalos, senhores e servos, mestres e aprendizes, cristãos e gentios, homens e mulheres, patriarcas e dependentes. Uma ordem em que todos são livres no sentido muito geral em que nenhuma pessoa é reduzida ao estatuto de uma coisa apropriável, mas em que a liberdade de uns é mais, muitíssimo mais, extensa do que a de outros. Na lógica interna desse princípio de ordem, um dos barões de Inglaterra e um servo da gleba são “por natureza” pessoas de dignidade e de virtude incomparáveis.
É contra essa ordem de privilégios, dissimulada por preconceitos naturalistas, que os príncipes primo-modernos, certamente por razões variadas, algumas de nobreza discutível, iniciam o longo processo de centralização do poder que conduz à instituição do Estado –- uma organização política de base territorial de um comunidade intemporal de pessoas anónimas designada “povo” ou “nação”. O Estado Absoluto, na sua curtíssima vigência histórica, nunca se identificou com o governo arbitrário ou caprichoso, à moda dos “despotismos orientais” caracterizados com repugnância pelos clássicos helénicos e latinos. O príncipe concentrava o poder para servir o Estado, o bem público personificado, em cujas glórias e tragédias participavam, em condições de tendencial igualdade, todos os súbditos.
Essa concepção impessoal do poder, como um serviço à comunidade, é um passo decisivo no sentido da liberdade moderna e da democracia representativa. As suas raízes próximas encontram-se na doutrina política da escolástica medieval, no âmbito da qual o poder é concebido como um serviço público em vez de uma faculdade pessoal. Mas é no Estado Absoluto que a ideia se encarna. Não é por acaso que o maior teórico do absolutismo régio, Thomas Hobbes (1578-1679), é também uma das mais fecundas inspirações do pensamento liberal e o principal arquitecto de três noções fundamentais no léxico político da modernidade tardia – indivíduo, contrato e representação. Mesmo nas versões de teor acentuadamente patriarcal, que colocaram o ênfase no direito divino dos monarcas, o absolutismo nunca se afastou da ideia de vinculação do poder ao bem comum.
Do ponto de vista de um observador moderno, é natural que a Magna Carta seja interpretada como um bastião da liberdade contra os desmandos de um príncipe caprichoso, um modelo que viria a ser emulado na Europa continental muitos séculos mais tarde quando os monarcas foram obrigados a aceitar limites constitucionais à sua autoridade. Mas o legado garantista da Magna Carta — a salvaguarda das liberdades – não pode ser dissociado do legado elitista – a apologia da ordem social estratificada.
A Magna Carta não integra a história da liberdade moderna porque esta em nada se aproxima da ideia de conservação dos privilégios tradicionais. Pelo contrário, implicou o repúdio da ordem antiga e da pretensão de naturalidade que lhe assistia, seguida da construção de uma ordem nova radicada no princípio da igualdade social. Uma ordem em que todos se reconhecem mutuamente o mais elevado status a que se pode aspirar numa república livre, o de cidadão. Cidadãos dignos, homens e mulheres comuns aos quais são devidos a consideração e o respeito em tempos reservada aos nobres. E cidadãos iguais nessa dignidade, sem embargo das múltiplas contingências sociais ou naturais – como a ascendência, a religião, o género, a riqueza, a raça, o talento ou a profissão – que os distinguem.