Às 10 da manhã de 16 de Março de 2009 reuniu-se no Ritz a fina flor da finança nacional. Não para almoço ou festa, que ainda era muito cedo para tal, mas para a Assembleia Geral Anual do Banco Espírito Santo (BES). Vivia-se então em plena crise financeira internacional, que se havia iniciado no Verão de 2007. A ordem de trabalhos era longa e variada, mas o que era realmente central e crucial para o Conselho de Administração (CdA) do banco era a aprovação, em três passos, de uma sessão de tosquia, neste caso noticiada com fanfarra pela comunicação social como uma “operação harmónio”, o que em português castiço também se poderia chamar “dar música” aos acionistas. Tunes for cash.

Nessa altura, como se podia verificar nas contas aprovadas nesse dia, o BES tinha um ativo de 75 mil milhões de euros, financiado por um passivo de 70 mil milhões e capitais próprios de 5 mil milhões. Estes eram valores contabilísticos. O valor de mercado dos capitais próprios, representados por 500 milhões de ações, cotadas nesses dias a cerca de €5, era metade do valor contabilístico, 2,5 mil milhões de euros.

Entre os analistas financeiros, o facto de o valor de mercado de uma ação, neste caso €5, estar abaixo do seu valor contabilístico, então de €10, constitui um poderoso sinal de alerta de que algo não está bem. Também é usual que as ações de uma empresa saudável, e com boas perspetivas para o futuro, tenham um preço de mercado múltiplo do seu valor nominal, o que não acontecia com o BES, cujas ações estavam com um preço de mercado semelhante ao valor nominal. Mas os tempos eram anormais e eram necessários sinais portentosos para que as pessoas prestassem atenção.

Aliás, tal como os humanos se habituam à dor, também se habituam e perdem sensibilidade às crises. Quem nesse dia ouvisse os discursos dos membros do CdA frisar que “num contexto extraordinariamente adverso” o BES tinha obtido “o terceiro maior resultado da sua história”, e asseverar que “dificilmente seria possível fazer mais e melhor na defesa da rentabilidade, da solidez e da estabilidade do Banco” ou presenciasse os elogios, congratulações e louvores feitos à administração pelos srs. acionistas não se teria apercebido de nenhuma crise: se o ambiente não era de tranquilidade, era de quase eforia. Quanto mais não fosse por se ir ver em breve um grande harmónio financeiro, um first para quase todos.

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Menos efóricos, os reguladores, pretendendo “reforçar” a “solidez” das instituições e do sistema financeiro, vinham encorajando os bancos de referência a aumentarem o seu capital próprio. Isto levantava um problema no BES: como o preço de mercado das suas ações era de €5, ninguém iria comprar novas ações acima de €5; por outro lado, como o Código das Sociedades Comerciais então não permitia a emissão de ações a preço inferior ao valor nominal, o banco não as podia emitir abaixo de €5.

Que propôs então o CdA aos srs. acionistas? A tal operação harmónio. Primeiro, que diminuíssem o valor nominal das ações de €5 para €1. Esta é uma operação inócua, que não faz mal a ninguém. Far-se-ia com simples movimentações contabilísticas: o valor nominal de cada ação passava a ser contabilizado a €1, e os restantes €4 “iam” para uma reserva especial. A isto chama-se, na gíria, “redução de capital e sua incorporação em reservas”. Repare-se que esta operação, que foi aprovada pelos srs. acionistas, não alterava em nada a realidade do negócio: o BES continuava com exatamente as mesmas agências, funcionários, depósitos e empréstimos que antes. Portanto, também em nada afetava o valor do banco nem o valor de mercado das suas ações, que continuavam a ser 500 milhões e a valer €5.

A proposta central e crucial vinha a seguir. Propôs então o CdA à aprovação dos srs. acionistas um aumento de capital feito através de uma emissão de “novas acções ordinárias, escriturais, nominativas” por “subscrição pública e com respeito pelo direito de preferência dos Accionistas”. O preço de subscrição seria de €1,8, pois o CdA propunha que, para além do valor nominal de €1, as novas ações fossem postas à subscrição com um ágio de €0,8. O que pode parecer um excelente negócio para o banco e atuais acionistas, vender, a outros, por €1,8 algo que tem valor nominal de €1, de facto não o é: o valor de mercado das ações do BES, recorde-se, era €5, e é este que é relevante. Note-se também que, para os atuais acionistas, como grupo, não é negócio que lhes traga dinheiro comprar por €1,8 ações que estão cotadas a €5: por cada nova ação emitida a €1,8 o valor das ações já existentes baixa um pouco. É surpreendente, portanto, que quando esta proposta foi feita não se terem ouvido vaias, pragas nem protestos; nem sequer a Mesa ter sido alvo de tomates ou ovos podres. O que pode demonstrar o elevado civismo do nosso povo. Ou indiciar outra coisa…

Porque é estranho que um acionista detentor de uma ação com valor de mercado de €5 aceite, sem protesto, que novas ações sejam emitidas a menos de metade deste valor, por apenas €1,8. De três uma:

  1. ou ele vai à subscrição e adquire novas ações na proporção que então detinha, compensando a perda que vai sofrer nas ações que já tem com um ganho equivalente naquelas que vai comprar;
  2. ou, se não tem dinheiro para ir à subscrição, ou mesmo que tenha, se não quiser ir, poderia tentar vender a terceiros o seu direito à subscrição, o que iria ser facilitado com a cotação desses direitos em bolsa;
  3. ou o seu investimento no BES vai perder valor, porque cada ação que detinha, e que até ao momento valia €5, vai passar a valer muito menos.

Pode parecer que, dada a existência das possibilidades 1. e 2. ninguém iria escolher a 3. e, portanto, que a proposta do CdA era inocente e inócua. E de facto é provável que ninguém mais tarde tenha “escolhido” 3., mas é natural que muitos srs. acionistas lá tenham “caído”. Como assim, se estavam prevenidos e estavam conscientes das consequências de não fazer nada?

Não há dúvida que formalmente estavam prevenidos. Mais: a decisão iria ser “deles”. Não só tinham ouvido a proposta do CdA, iriam-na votar, e até iriam receber mais tarde, não fosse alguém esquecer-se, uma carta do BES a recordá-los de que tinham direito a subscrever as novas ações. Alguns até receberiam um telefonema do seu gestor de conta a explicar a conveniência de fazer “alguma coisa”, fosse 1. ou 2. Na prática, no entanto, muitos deles, especialmente os pequenos acionistas, pessoas como pequenos aforradores, os idosos, os trabalhadores e pequenos empresários a constituírem o seu pé-de-meia, os órfãos e as viúvas herdeiros legitimários com meia-dúzia de ações, os doentes e hospitalizados, os profissionais não financeiros a preparar a sua reforma e com uma vida laboral intensa, e todos aqueles que, mesmo não sabendo nada sobre conservação alimentar, quando vão comprar peixe esperam que seja fresco, e quando vão aos bancos aplicar o seu aforro esperam não incorrer mais risco que ao equivalente a um depósito a prazo, e que não só não tinham estado presentes no Ritz naquela manhã de 16 de Março de 2009, mas quando receberam a carta do BES, juntamente com mais meia-dúzia de cartas com publicidade a propor-lhes a compra disto e daquilo, simplesmente não a leram, na prática não estavam realmente conscientes desta subscrição. E mesmo que tivessem, seria que teriam percebido o que implicava? Será que saberiam o que é um “direito”? Será que saberiam que o poderiam alienar em bolsa? E quando soubessem que teriam de pagar uma comissão, que nas pequenas transações levaria quase todo o seu “ganho”, será que se dariam ao trabalho de dar ordem de venda?

E será que as possibilidades 1. e 2. seriam assim tão vantajosas? De facto 1. e 2. estão como parede tal como 3. está como espada.  Ou, usando simbologia veterotestamentária, esta proposta iria por os srs. acionistas como “um homem que foge diante de um leão e encontra um urso, como o que, regressando a casa apoia a mão na parede e é mordido por uma serpente” (Amós 5, 19). A proposta do CdA, se aprovada, consistia de facto numa chantagem aos srs. acionistas. Poderia ter sido formulada, de modo mais claro, do seguinte modo:

“Srs. acionistas: o CdA quer de aumentar o capital do BES. Ou passam para cá o cacau, subscrevendo totalmente esta emissão ou, caso contrário, o vosso investimento vai perder valor porque outros a subscreverão por uma ninharia.”

Esta proposta é em quase tudo equivalente à de um rufião delicadamente sugerir a uma velhinha para ou lhe passar a carteira ou, em alternativa, a ir vender à Cova da Moura que ele lhe dá boleia. A diferença é que, neste caso, a velhinha podia votar que não. É certo que um sr. acionista “tendo ficado com uma dúvida, relativamente à operação, pretendeu esclarecimento sobre se a reserva especial agora constituída vai ser apropriada apenas por parte dos actuais Accionistas e ainda pretendia saber se a estrutura do aumento de capital agora proposta foi, ou não, objecto de consulta prévia à CMVM”.

Ao que o sr. presidente da Comissão Executiva “esclarece[u] que a reserva especial, que emerge da redução de capital e sua incorporação, é apropriada por todos os Accionistas.” Esclarecimento exato, mais que suficiente para um comerciante ou merceeiro da velha escola perceber a trama, mas potencialmente enganador para um sr. dr. ou outro tolo contemporâneo. Neste contexto percebe-se o porquê de mais nenhum sr. acionista ter levantado qualquer objeção ou feito outra pergunta. Pelo contrário, um sr. dr. acionista “pediu a palavra para felicitar a Administração pelo aumento de capital, sem intervenção do Estado.” Previamente a esta felicitação, um colega do sr. presidente da Comissão Executiva havia ainda “esclarec[ido] que, desde a primeira hora, a CMVM acompanhou diariamente esta operação e estava tudo aprovado.”

O que levanta uma questão: para que serve a CMVM? Não é para proteger os investidores deste tipo de esquemas, especialmente os mais fracos em termos de informação e conhecimentos financeiros? Esta aprovação da CMVM afigura-se equivalente à autorização que a ASAE poderia dar a um talhante para vender carne podre, com o argumento de que qualquer especialista em higiene alimentar perceberia do que se trata. Faz também lembrar as injunções feitas por Ezequiel 34, 2-4, contra o tratamento que os pastores (CMVM) dão às ovelhas (pequenos investidores): “Ai dos pastores de Israel que se apascentam a si mesmos! Não devem os pastores [CMVM] apascentar o rebanho [pequenos investidores]? Vós, porém, bebeste o leite [taxas de supervisão], vestistes-vos com a sua lã [emolumentos], mataste as rezes mais gordas [que faltará vir ainda a público?] e não apascentastes as ovelhas [pequenos investidores]. Não tratastes das que eram fracas [lesados], não cuidastes da que estava doente [mais lesados], não curaste a que estava ferida [outros lesados]; não reconduziste a transviada [os que não estavam a perceber o que lhes estava a acontecer]; não procuraste a que se tinha perdido [os que investiram em produtos estruturados]; mas antes a todas trataste com violência e dureza.”

A CMVM permite uma operação destas e considera que as suas ovelhas, os órfãos e as viúvas, ficam protegidos? E não acontece nada? A delicadeza dos srs. acionistas em não colocarem mais questões, ou a sua passividade em não pegarem numa calculadora para fazerem umas contas simples e perceberem que a aprovação da proposta do CdA os iria por entre a espada e a parede, não terá ficado a dever-se ao anúncio de que a CMVM tinha visto tudo e aprovado tudo?  E se a proteção que os pequenos investidores recebem da CMVM é deste tipo, não seria melhor dissolver a Comissão e dizer ao povo português:

“Meus amigos, este mundo é difícil e pode ser cruel. Então dos mercados financeiros nem se fala. Se quiserem investir na bolsa tenham cuidado, estudem bem as instituições, avaliem o caracter dos seus gestores e façam bem as contas porque não faltam malandros que vos tentarão enganar. Mas também há muita instituição sólida e gente honesta, e as possibilidades para fazerem crescer as vossas poupanças são enormes. Vocês são adultos e responsáveis, e por isso podem fazer o que quiserem. Mas se vos depenarem não venham choramingar ao governo e pedir-lhe para vos indemnizar de investimentos palermas. Resolvam os vossos problemas nos tribunais, que estão preparados para passar julgamento com a devida celeridade.”

Dado que os investidores se julgavam protegidos pelos reguladores, mas que estes não protegem aqueles, quis o destino que o Tentador tornasse patente, a todos, o caráter danoso da recomendação feita pelo CdA aos srs. acionistas. Era esta que, de modo a obter um encaixe de 1,2 mil milhões de euros, se emitissem 666.666.666 novas ações ordinárias com preço de emissão de €1,8. O número de ações a emitir era, portanto, representado por 666 repetido 3 vezes. “Aqui é preciso discernimento: quem tiver inteligência calcule o número da Besta, porque é um número de homem: este número é 666.” (Ap. 13, 18)

Se este sinal não era suficiente para tornar evidente aos srs. acionistas o caráter infernal da proposta que iriam votar, que mais seria necessário? Que o chão do Ritz se fendesse e começassem a subir vapores sulfurosos? Que o Maligno viesse em pessoa defender a operação? Ou que ressuscitasse alguns dos mortos e bradasse a alta voz “cuidado com esta proposta!”? Lá dizia Pai Abraão, ao homem rico, que “se não ouvem Moisés e os profetas, também não acreditarão, ainda que ressuscite alguém dentre os mortos.” (Lc. 16, 31). Também nesta ocasião “toda a terra, cheia de admiração, seguiu a Besta. […] Prostraram-se diante da Besta, dizendo: «Quem há semelhante à Besta? E quem poderá ir contra ela?»” (Ap. 13, 4) E votaram todos e aprovaram ser tosquiados ao som de uma operação harmónio: a proposta do CdA venceu por uma maioria de 99,88%, uma percentagem que já nem comunistas usam. Os srs. acionistas escolheram dar cash em troca de cantigas, cuja letra a maioria não percebia, apesar dos sinais evidentes do dedo de Poderes e Dominações tenebrosos.

Para completar a operação harmónio foi logo de seguida posta à consideração dos srs. acionistas um outro aumento de capital, este por incorporação de reservas. Tal como a redução de capital inicial, esta seria uma mera operação contabilística. O valor nominal de cada uma das 1.166 milhões de ações do BES, das 500 milhões de ações antigas mais as 666 milhões de ações a emitir, passava de €1 para €3 por incorporação de reservas, isto é, saiam de reservas €2 por ação, que se iam juntar ao capital social de €1 por ação, para formarem os €3 de valor nominal por ação. Como é evidente, esta operação em nada afetava nem o negócio do BES, nem o seu valor.

A única parte deste harmónio financeiro que afetou o valor do BES foi a segunda operação, a emissão acionista a €1,8 por ação. Com ela entraram 1,2 mil milhões de euros no banco, que foram investidos com a sagacidade e prudência que todos conhecem, e que serviram para reforçar os “rácios”, um feito de duvidoso valor, mas que deixou então quase toda a gente feliz; sendo que os “antigos” acionistas com 500 milhões de ações avaliadas em 2,5 mil milhões de euros antes da operação passaram a ficar em minoria, e com uma participação inferior, face aos “novos” acionistas que despenderam 1,2 mil milhões de euros para adquirir 666 milhões de ações. Depois desta operação, o valor de mercado das ações do BES passou a ser cerca de €3,2, uma perda de cerca €1,8 euros para cada ação “antiga”, e um ganho imediato de cerca €1,4 para cada ação “nova”. Como é evidente, as recomendações do CdA, totalmente aprovadas pelos reguladores, foram no melhor interesse dos srs. acionistas. Mas de que srs. acionistas?

“E foi-lhe dada [à Besta] uma boca que proferia coisas arrogantes e blasfémias, e foi-lhe dado o poder de agir durante quarenta e dois meses.” (Ap. 13, 5) Findos os quais (mais ou menos), implodiu.