Por todo o lado ouço prenúncios de apocalipse. O mundo está cada vez mais dividido, os extremos políticos avançam, os populismos grassam e consomem almas incautas. A tecnologia tirou-nos a relação humana, trocámos as pessoas pelos ecrãs, as crianças já não sabem brincar, as redes sociais são uma fonte de imediatismo e de dispersão, de vidas alternativas, de perigo e abuso. Os millenials são uns impacientes e sonhadores, antigamente é que era, havia emprego para a vida, hoje não há tempo para viver, mas para acumular e stressar. Os divórcios aumentam, as pessoas sozinhas são cada vez mais, os salários não chegam para pagar contas, é cada vez mais difícil ser pai e mãe, tendo em conta as exigências de perfeição de todos. Hoje as pessoas querem apenas dar-se com quem concorda com elas e não questionar-se. Pensam que tudo é uma luta de poderes entre grupos de interesse e ninguém está genuinamente à procura da verdade, a respeitá-la e deixar que dite o caminho.
Tudo isto é verdade? Muitas coisas, sim. E qual a solução? Divulgar o que está mal e tornar-se parte da nossa queixa permanente? Da nossa descrença em tudo? Ultimamente tenho assistido a vários debates entre gente formada e o discurso é o mesmo. O problema do “imediatismo”, o demónio das “redes sociais”, a “democracia vai acabar”. No primeiro caso, ouvi num evento que frequentei, organizado por uma congregação da Igreja. Por grupos, discutiam-se com os jovens “temas da atualidade”, o “imediatismo” foi um caso. Mostraram-se fotos de selfies, de redes sociais, de violência gratuita, o habitual. Todos os jovens, moderados por uma irmã, eram unânimes: as redes sociais matam-nos e afastam-nos dos outros, alienam-nos, são o “demónio”. A irmã, em vez de ouvir e tentar mostrar o “copo meio cheio”, algo que este mundo esqueceu, cavalgava a mesma onda e corroborava ainda mais essas ideias. “Que incrível, as imagens de violência e o voyeurismo”. Sou das pessoas que se cansa muito de soundbytes. Aquelas “verdades” que se repetem ad aeternum. A queixa e o protesto infecundo, o ressentimento improdutivo e leviano, até.
Fiquei chocado como jovens pareciam velhos a falar, com aquele cinismo e descrença. Ser jovem é acreditar, sonhar, fazer. Sejamos jovens! (sendo que velhos podem ser jovens, depende é do mindset).
Ninguém nega que existem perigos no mundo de hoje, mas também existem muitas coisas boas. Concordo com o Jordan Peterson: “Se olharmos a um nível superior para o nosso mundo, as coisas estão melhor do que alguma vez estiveram. E cada vez melhoram mais e mais rapidamente. Entre 2000 e 2012, a taxa de pobreza absoluta no planeta foi reduzida para metade e em 2018 a maioria das pessoas no mundo passou a pertencer à classe média. Isto são feitos impressionantes e que, provavelmente, deveríamos estar a celebrar nas ruas. A ONU prevê que em 2030 teremos praticamente eliminado a pobreza extrema, de acordo com a definição deles, pessoas que vivem com menos de 1,9 dólares por dia. Não há conflitos de grande escala no planeta, não há qualquer guerra no hemisfério ocidental e a probabilidade de morrermos numa batalha tem vindo a decrescer desde a Segunda Guerra Mundial. Até a violência interpessoal tem vindo a decair na maior parte dos países. As pessoas estão a ligar-se à eletricidade a um ritmo impressionante. Os telemóveis encontram-se por todo o lado, disseminaram-se de forma tão rápida e tão barata que é um milagre. As economias com maior taxa de crescimento estão na África subsariana, onde as taxas de mortalidade infantil são equivalentes às que se registavam na Europa em 1952 (…)” (Revista do Expresso, 12.01.19).
Em relação aos media, por exemplo, também há coisas boas. O jornalismo de investigação, aquele que denuncia o que mais ninguém o faz, quando aqueles que anseiam pela justiça, não a têm nas instâncias devidas. Quantas pessoas se conectaram pela internet? Quanto conhecimento está disponível, apenas à distância de um clique? No que toca à religião, houve outro tempo em que se difundisse melhor a fé e que estivesse disponível a tantas pessoas? Imediatismo? É certo que tudo o que é bom tem o seu outro lado, mas não é nada que não nos tivéssemos que defrontar noutros tempos. Quando apareceu a roda, cuidado com os desastres, quando apareceu a imprensa, mais pessoas tiveram acesso ao conhecimento, mas mais discussões apareceram…
Ah, mas agora a internet é dominada por algoritmos e eles vão lavar o cérebro às pessoas e influenciar opiniões, tal como nas eleições americanas. Senhores, Hitler convenceu um povo de que ele era a salvação nacional, ganhou eleições legítimas e não havia redes sociais! E os “salvadores do povo” do comunismo que depois os controlavam e os aprisionavam em gulags (campos de concentração) e foram responsáveis por milhões de mortos? Não consta que existisse a empresa Cambridge Analytica. Também existem jornalistas que fazem fact checking, também existem jornalistas (muitos) que não exibem violência gratuita, também conhecemos tanta gente pelas redes sociais, também se faz muito bem e combate-se ódio pelas redes sociais, há tantos predadores dentro e fora das redes sociais.
Como o Papa Francisco disse, “a internet é uma coisa boa, um Dom de Deus” e alerta mais uma vez para aquela Igreja autorreferencial, negativa e fechada. Este é um conselho útil de navegação, ponderação e não sermos contra o mundo, revoltados e não dialogantes. Como podem os católicos ser parte da solução assim? Parece que se quer atrair jovens para a Igreja mostrando que não somos nenhuns “ingénuos”, quando a ingenuidade está em querer agradar e em ver os assuntos apenas num prisma.
Mas não são só algumas pessoas da Igreja que são negativas. Muitos comunicadores e opinion makers falam do “fenómeno novo” das redes sociais e seus perigos, como as identidades falsas. Como se fosse algo de “novo”. Não sabem o que é o mIRC (um dos primeiros chats de sempre da internet, criado em 1995, as pessoas da minha geração de 80 lembram-se bem), de certeza. Quando é que este fenómeno é novo? Mais, onde é que é relevante? Segundo os números, não chegam a 10% os perfis em redes sociais que são falsos. E na sociedade não existiram sempre personas, mentirosos e burlões? Quem era a D. Branca e o Capitão Roby? Tinham perfil no facebook? Não navego nesta clivagem online/ offline. Quem trabalha nesta área sabe: o online é reflexo do offline, não é pior. E o online ampliou as nossas possibilidades e não o contrário. Temos é de o saber usar, como qualquer ferramenta ou situação na vida. Quantos amigos de facebook temos cada um de nós e em quantos é que acontecem estes fenómenos? Todos os dias? E falar do bom que têm as redes? As pessoas que conhecemos, as notícias que lemos, os mundos que visitamos e nunca antes fora possível? Este pendor vampírico da televisão mata-me. Tantas coisas boas a acontecer e as notícias são um rol de calamidades não representativas. Não são a maioria e quando são, porque não invocar soluções? Como, por exemplo, a prudência e a boa educação online, são temas interessantes.
Outra frase que ouço muito é “a democracia acabou”. Uma das pessoas de quem ouvi isto é um reputado jornalista numa conferência, mas muitos mais, agora com a “emergência dos populismos”. Como se se pudesse comparar à emergência dos totalitarismos do século XX. Outro totalitarismo é o do politicamente correto e as pessoas estão fartas disso. O mesmo jornalista citava Karl Marx (julgávamo-lo morto), para dizer que esta polarização e populismo foram antecipadas pelo economista alemão. Gostaria de lhe perguntar se há regime melhor do que a democracia, como diria Churchill? Mesmo que imperfeito, conhece melhor? Mesmo que o capitalismo não regulado e selvagem tenha falhado, conhece melhor sistema? O comunismo? O que matou milhões de pessoas, como o holocausto nazi? E ainda mata hoje e, falamos mal de Trump, e não sendo eu um Trumpista, os EUA não estão como a Venezuela, à beira do colapso, com 3 milhões de pessoas emigradas, outras a passar fome.
Como dizia Gilles Lipovetsky, “A esquerda pode continuar a falar, mas não vejo alternativa ao capitalismo. Íamos substituí-lo por quê? Quem tem essa chave? Que tipo de economia vamos instituir em troca? Com controlos? Mas o capitalismo nunca foi hostil a um certo nível de controlo. Claro que há grandes problemas, mas a sua força é essa: vem uma crise, corrige, vem outra crise e volta a corrigir, é sempre o mesmo e sempre diferente. Depois da queda do Muro de Berlim as alternativas credíveis e globais desapareceram. Até percebo que se diabolize o capitalismo, mas não temos nada para pôr em seu lugar”.
É verdade que nos estamos a polarizar e estão a emergir forças que negam as pontes de diálogo e contradizem os princípios com que nasceram as democracias e afastam contributo de quem é diferente. Mas também temos de nos perguntar, é o politicamente correto em que estávamos a cair que estava bem? É algo de que tenho receio, mas também nos esquecemos que a mortalidade infantil de África está nos níveis da Europa nos anos 50. O que tem a ver? O copo meio cheio.
Podemos fazer duas perguntas perante o mal: o que posso fazer e o que se pode tirar de bom? Não navegar na maionese da desgraça, a qual também é cómoda, pois não nos responsabiliza a encontrar soluções. De resto, este é um comportamento muito português, o “contentamento descontente” camoniano.
Não caiamos no mesmo extremo que os populismos, senão seremos reféns de outro extremo. São sempre estes pensadores que me atraem, os que analisam os dois “copos”, o meio cheio e o meio vazio. Só posso dar razão aos que dizem que estamos polarizados. Estamos polarizados, sem dúvida, mas ainda há luzes, os moderados, os verdadeiros revolucionários, que, sabendo que não há nada perfeito, “There is a crack in everything (there is a crack in everything)/ That’s how the light gets in”, como dizia Leonard Cohen. E os que se responsabilizam, no pouco, pequeno e possível que possam fazer para aliviar o mal, primeiro em si próprios, depois nos outros. Para acabar, G.K. Chesterton tem uma frase genial sobre este tema, “O otimista é aquele que acredita que tudo está bem menos o pessimista; o pessimista é aquele que pensa que tudo está mal, menos ele próprio”.