A vitória de Donald Trump foi, sem dúvida, a grande surpresa desta semana, porque a imprensa fez crer na provável vitória da candidata democrata ou, pelo menos, no empate técnico das duas candidaturas à presidência dos Estados Unidos da América.

É evidente que este resultado teve um sabor amargo para os media. Se Watergate expressou o máximo poder da comunicação social, que logrou a demissão de um presidente dos EUA, a eleição e reeleição de Donald Trump manifestam o seu maior descrédito enquanto poder, ou contrapoder. Agora, como na sua primeira eleição, os media não lograram impedir a eleição do candidato republicano. Com efeito, o novo presidente, agora eleito, foi insistentemente apresentado, pelos media, como um perigo para a democracia norte-americana e, até, para a paz mundial. Mas o alarmismo da denúncia não impressionou o eleitorado e foi, até, contraproducente.

Também entre nós se verificou algum histerismo mediático. O Público, no dia seguinte à eleição, ainda não referia o resultado e fazia crer que a “América dividida conta votos”, sugerindo um empate técnico que, na realidade, não houve. O texto da página 2 remetia para declarações de Joe Biden, em 2020 (!), e na página 3, publicava um artigo da correspondente em Bruxelas, sobre a possível reacção de Orbán às eleições nos EUA. Por sua vez, as páginas 4 e 5 estavam dedicadas a uma extensa entrevista a um jornalista freelancer, que dedicou a sua vida “a temas de fronteira, México e, sobretudo, à epidemia da droga” (sic), tudo temas que, como é óbvio, são da maior pertinência na manhã seguinte à eleição do novo Presidente dos EUA! Isto é apenas falta de informação, desinformação ou contrainformação?!

No dia 7, finalmente, o Público noticiou o que já há mais de 24 horas se sabia, exibindo, na primeira página, uma fotografia, em grande plano, da cara do presidente eleito dos EUA, que é de meter medo ao susto. O título era a condizer: “Como irá o mundo sobreviver a Trump?”. Uma pergunta que, de facto, não faz sentido, até porque, como é sabido por todos, menos talvez pelo autor do título, o mundo já ‘sobreviveu’ ao seu primeiro mandato… Na página 2, em grandes parangonas, o mesmo jornal referia-se ao presidente eleito como se fosse um alegado criminoso, foragido da justiça: “Trump regressa pela porta grande sem passar pela cadeia”, talvez em homenagem dos políticos lusos e brasileiros ex-presidiários, por sinal camaradas ideológicos da candidata democrata. O tom apocalíptico regressava na manchete sensacionalista da página 7: “A comunidade das democracias acabou com a reeleição de Trump”. Na página 12 dizia-se ainda que “um mentiroso compulsivo consegue ser reconduzido à Casa Branca” e, na seguinte, escrevia-se sobre “Um novo tempo de trevas”…

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Não sei o que mais lamentar: se o discurso de ódio, que é, pelos vistos, o livro de estilo dessa publicação, a falta de profissionalismo, ou o unanimismo antidemocrático de um tal desrespeito pela vontade livre dos eleitores norte-americanos. Se tivesse sido outro o resultado da eleição presidencial, outra seria também, decerto, a reação do jornal… Não restam dúvidas quanto à crise deste jornalismo politicamente comprometido, que não só não conseguiu impedir a reeleição de Donald Trump, como não sabe, nem informa, talvez porque a informação verdadeira circula por outros canais, mais rápidos, plurais e isentos, como alguns jornais digitais e algumas redes sociais.

Entretanto, já muito se escreveu sobre a surpreendente vitória de Trump. A esta crónica não interessa, como é óbvio, a análise política, mas as questões morais, à luz de um luminoso comentário do Papa Francisco sobre os dois candidatos presidenciais.

A Trump valeu a péssima prestação de Joe Biden, que mais não é do que uma sombra errática de si mesmo, arrastando-se penosamente pelo cenário político norte-americano e mundial. Dolorosa é também a sua duplicidade moral, dada a gritante contradição entre a sua alegada fé católica e a sua comprovada política pró-aborto. Por este motivo foi, em alguma ocasião e em nome da mais elementar coerência pastoral, excluído, pelo Bispo da sua diocese, da comunhão eucarística.

Se Donald Trump beneficiou, evidentemente, do ocaso do seu sucessor e, agora, antecessor na Casa Branca, também lucrou com a insignificância da ainda Vice-Presidente Kamala Harris. Até deputados do partido democrata se viram obrigados a retirar-lhe o apoio, por não se reverem na sua radical e extremista política contra a vida, mascarada de ‘direitos reprodutivos da mulher’.  Defender o aborto até à nascença, como se pratica em alguns Estados norte-americanos, é equipará-lo ao infanticídio. É inaceitável, mas compreende-se que, por ignorância, haja quem duvide de que um feto, com poucas semanas de existência, já é um ser humano, como a ciência afirma sem qualquer dúvida. Mas, em caso nenhum, se pode permitir a morte impune de uma criança já nascida, ou no momento do seu nascimento.

Surpreendentemente, a Donald Trump não lhe faltou uma não despicienda ajuda do Papa Francisco. Apesar de o Santo Padre criticar, com frequência, a política anti-imigração do agora reeleito Presidente dos EUA, Francisco implicitamente aconselhou o voto no candidato republicano. Com efeito, “o Papa Francisco criticou os dois candidatos presidenciais dos EUA, pelo que apelidou de políticas anti-vida, em relação ao aborto e à migração, e aconselhou os católicos americanos a escolherem o ‘mal menor’ nas próximas eleições nos EUA. ‘Ambos são contra a vida, seja aquele que expulsa os migrantes, seja aquele que mata bebés’, disse Francisco” (DN, 14-9-24).

A mesma fonte procurou manipular a declaração papal em benefício da candidata democrata: “O Papa fez da situação dos migrantes uma prioridade do seu pontificado e fala com ênfase e frequência sobre o assunto. Relativamente ao aborto, embora defenda firmemente os ensinamentos da Igreja que o proíbem, não tem dado tanta ênfase à doutrina da Igreja como os seus antecessores” (id.). Não é verdade que o o magistério deste Papa não é tão assertivo como o dos seus antecessores, em relação à defesa da vida, pois Francisco – honra lhe seja feita! – sempre foi tão ou mais claro do que os anteriores Papas nesta matéria: “Fazer um aborto é matar um ser humano. Podem gostar da palavra ou não, mas é matar. Temos de ver isto claramente” (id.). Portanto, não obstante a solidariedade do Santo Padre para com os migrantes, é óbvio que, entre matar bebés e expulsar migrantes, o “mal menor” é este último.

Se Donald Trump é, na expressão do Papa Francisco, o “mal menor”, a sua reeleição inspira alguma preocupação, nos EUA e no resto do mundo, pois, mesmo sendo o “menor”, não deixa de ser um “mal”… Mas é salutar que o eleitorado norte-americano não se tenha deixado intoxicar por uma imprensa que, lá como cá, carece de legitimidade democrática e é cada vez mais partidária. Deus queira que esta eleição presidencial seja o princípio do fim deste abuso de um poder não democrático, bem como do silencioso holocausto que, todos os anos, sacrifica milhões de vidas humanas por nascer.