São mais de 30 as vítimas que perderam a vida em contexto de violência doméstica, em Portugal, entre janeiro e outubro deste ano; a cada 10 dias morre uma mulher em Portugal vítima de violência doméstica. Estes dados são avassaladores e enfatizam a pertinência da discussão sobre a necessidade de criação de secções especializadas que permitam uma cooperação interdisciplinar com um único propósito: a proteção da vítima.
É neste contexto que o Ministério Público anuncia a constituição de Secções Especializadas Integradas de Violência Doméstica (SEIVD), que, primeiramente, serão implementadas em Lisboa, Seixal, Porto e Matosinhos, com o objetivo de proteger as vítimas, mas também os menores.
Foi necessário que fosse atingido um dos cenários mais negros do nosso país para que, finalmente, fosse dado ao tema da violência doméstica a importância que, infelizmente, conquistou. Mas não pode ficar por aqui, como foi referido, inúmeras vezes, por diversas formas, na primeira grande conferência internacional sobre o tema, promovida pelo Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados.
Efetivamente, urge promover a cooperação entre todas as entidades essenciais à proteção da vítima, desde os órgãos de polícia criminal aos advogados, sob pena de continuarem a perpetrar-se desfechos que podiam, eventualmente, ser evitados. Como defendi e foi reconhecido na conferência, mais do que mudar as leis, é preciso mudar as mentalidades, mesmo quando sabemos que é necessária formação, a diversos níveis do processo, e criar melhores condições para que, por exemplo, a polícia possa trabalhar.
No mesmo comunicado em que anunciou a constituição das SEIVD, o Ministério Público acrescenta que estas, “além da especialização na investigação da violência doméstica, têm outro núcleo de atribuições que, partindo de uma análise abrangente e integrada do quadro familiar onde ocorre o crime, permite a definição célere de procedimentos, designadamente nas vertentes de articulação com os órgãos de polícia criminal, com as entidades vocacionadas para a proteção das vítimas e, em especial, com a jurisdição de família e crianças”.
A crítica é que esta medida é tardia. Foi necessário atingir um dos cenários mais negros do nosso país para que, finalmente, fosse dado ao tema da violência doméstica a importância que, infelizmente, conquistou.
Um dos principais motivos que retrai as vítimas de proceder à apresentação de queixa é, precisamente, a descrença no sistema, ou seja, a convicção de que não lhes será prestada a devida assistência e acompanhamento ao longo de todo o processo subsequente à apresentação da queixa. Assim, a criação desta rede articulada de colaboração entre procuradores especializados em investigação criminal e investigadores da jurisdição de família e menores poderá, finalmente, encetar a inversão, há muito necessária, deste paradigma.
E, neste contexto, o papel que os advogados devem assumir nas redes interdisciplinares é fundamental. É essencial garantir a presença de um advogado desde o momento inicial de todo este procedimento, ou seja, desde o momento da apresentação da queixa. Afigura-se fundamental o reconhecimento de que os advogados são parte essencial da solução de combate ao flagelo da violência doméstica, através da instituição da ideia de que a sua intervenção na fase inicial no processo garante que a vítima é juridicamente acompanhada, aconselhada e informada de todas as fases processuais. É certo que a importância concedida à classe nesta matéria tem vindo, paulatinamente, a solidificar-se, todavia, o caminho a percorrer ainda é longo. A criação de escalas de advogados que garantam o acompanhamento profissional da vítima desde o momento da apresentação da queixa, bem como o patrocínio judiciário obrigatório em situações de violência doméstica, nomeadamente para evitar que estas aceitem suspensões provisórias de processos crime cujo verdadeiro alcance muitas vezes desconhecem, são duas medidas que temos vindo a defender e que julgamos absolutamente imprescindíveis ao acautelamento dos interesses das vítimas.
Do exposto, resulta uma evidente conclusão: a proteção da vítima só pode ser devidamente assegurada se o quadro da violência doméstica for encarado como um todo, anulando-se a desfragmentação de procedimentos. Percebeu-se, finalmente, que o caminho da prevenção e combate à violência doméstica percorre-se com recurso à especialização e à interdisciplinaridade, sendo essencial englobar nesta equação o papel do advogado.