Os recentes acontecimentos na Amadora, onde um agente da autoridade tirou a vida a Odair Moniz sob circunstâncias ainda por apurar, sublinham as fraturas profundas que persistem nas relações entre as forças de segurança e algumas comunidades marginalizadas. Os episódios subsequentes de desordem pública – um dos quais deixou um motorista da Carris em estado grave – reforçam uma perigosa sensação de insegurança, tornando essencial a análise do papel das instituições políticas e sociais na promoção de padrões de inclusão, bem como na mitigação das desigualdades, do racismo e de outras formas de discriminação.
A urgência de reformas sociais de base torna-se patente quando observamos fenómenos “extremos”, como a morte de um cidadão negro pela polícia, ou a ação de grupos organizados com o intuito de perpetrar desacatos. As sensações de insegurança e desordem provocadas tornam preponderante compreender que uma escalada de violência poderá refletir uma estrutura social desigual e insuficientemente inclusiva. É nesse sentido que sociólogos, como Pierre Bourdieu, notam que as desigualdades estruturais se traduzem em diversas formas de violência simbólica e sistémica, fatores que acabam por dificultar uma verdadeira integração social.
Contudo, a experiência internacional fornece-nos exemplos de medidas capazes de combater esta exclusão. Em países como a Noruega e o Canadá, programas obrigatórios de formação em mediação intercultural para agentes da autoridade têm-se mostrado eficazes na redução de abordagens violentas e racistas. No entanto, tal como exemplificado pelo caso de George Floyd nos Estados Unidos da América, a reforma e um maior investimento nas forças de segurança devem igualmente passar por uma responsabilização estrutural e transparente. A implementação de câmaras corporais, por exemplo, tem sido uma medida eficaz para diminuir a violência policial em cidades como Nova Iorque e Chicago, reduzindo não só a violência direta, mas promovendo igualmente uma maior confiança na relação entre as comunidades e as forças policiais, assim como a legitimação do trabalho destas últimas em situações de alto risco.
Para o combate à exclusão social, a evidência internacional releva ainda preponderância da criação de redes locais de apoio e mediação comunitária intercultural. Em Portugal, a adoção/aprofundamento de um modelo semelhante é fulcral, especialmente em áreas metropolitanas com uma densa diversidade cultural – como Lisboa e Porto -, onde os conflitos são agravados pela perceção mútua de exclusão, desigualdade e antagonismo.
Do mesmo modo, o Estado deve adotar políticas de integração laboral e social de carácter urgente. Dados da Organização Internacional do Trabalho mostram que uma das vias mais eficazes para a inclusão é o acesso a emprego digno e bem remunerado. Em países como a Alemanha, a promoção de programas de formação técnica para jovens de bairros socialmente desfavorecidos tem provado ser uma das soluções mais robustas para evitar a reprodução da marginalidade intergeracional e para fomentar uma economia inclusiva.
Todavia, a resposta institucional e política deve ir muito além da promoção de medidas de curto prazo. A adoção de uma narrativa pública advocatória da coesão social e da luta contra as desigualdades e o racismo reveste-se, por isso, de total relevância. As mais recentes declarações de André Ventura e Pedro Pinto, que polarizam e alimentam sentimentos de ódio, são sintomáticas de uma retórica perigosa e extremada que, replicando a postura de outros movimentos europeus de extrema-direita, ameaça desmantelar a paz social. Vozes como estas incentivam uma visão maniqueísta e superficial dos problemas, desviando a atenção das verdadeiras soluções e promovendo a hostilidade social em nome de uma alegada ordem. A História mostra-nos que, em momentos de crise, o populismo procura sempre converter o medo e o ódio em capital político – tal como o Chega tem, constantemente, procurado fazer.
Assim, no mês em que foi divulgada a subida da taxa de risco de pobreza pela primeira vez em sete anos, afetando sobretudo crianças e jovens, torna-se urgente que o poder político reforce e valorize o sistema educativo e as políticas de inclusão e apoio social, de modo a evitar a escalada do ódio racial e de respostas violentas. A recente petição pública, que recolheu mais de 100 mil assinaturas para sustentar a queixa-crime contra os líderes do Chega, demonstra que há, na sociedade civil, uma vontade inequívoca de repudiar o discurso divisivo e de promover uma política inclusiva e solidária. Esta ação cidadã é, por isso, um sinal otimista da vontade coletiva em evitar que o país seja arrastado para um ciclo de ódio e violência.
No entanto, o papel das nossas instituições, tanto locais como nacionais, é crucial para materializar uma verdadeira coesão social. Se o Estado abdicar da sua responsabilidade, reforçando, por oposição, respostas e discursos securitários sem o devido acompanhamento social, estará apenas a fomentar a exclusão e, com ela, a espiral de conflitos que testemunhámos nos últimos dias.