Falar hoje de Franco Nogueira e do seu pensamento político e itinerário intelectual pode trazer-nos pistas para percebermos melhor a chamada crise da direita portuguesa e da sua representação política.

Franco Nogueira começa por nos trazer um paradoxo: o que é que faz com que o crítico literário com claras simpatias culturais de esquerda republicana e liberal, o diplomata profissional, sensível aos imperativos da Realpolitik e distante da ortodoxia do Estado Novo, venha depois a transformar-se numa espécie de guia e consciência crítica da direita pós-salazarista nos últimos anos do anterior regime?

O facto é que o paradoxal itinerário político de Franco Nogueira acaba por dar um sentido coerente àquilo que vai definir o pensamento da direita nacional e social portuguesa no século XX. Não só à sua afirmação e propostas mas também às suas dúvidas e contradições. É nessa medida que o seu caminho intelectual e o seu ideário político são tão interessantes e importantes para o panorama da direita e das direitas portuguesas na segunda metade do século XX.

Em Portugal, nos últimos cinquenta anos, é a esquerda que tem contado a História e estabelecido os conceitos, em termos de opinião pública e publicada. E não só depois do 25 de Abril, porque já era dominante nos tempos em que o poder político era monopólio da direita do Estado Novo. Isto é, Portugal viveu na prática a teoria gramsciana: também aqui o domínio cultural (da esquerda) precedeu o seu triunfo político.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Salazar: ortodoxia e pragmatismo

A direita – e as direitas – exerceram o governo de Portugal num modelo autoritário, apoiado pelas Forças Armadas, durante o quase meio século que vai de 1926 a 1974. O conteúdo ideológico desses governos foi um nacionalismo conservador, simbolizado por uma trilogia também conservadora – Deus, Pátria e Família. Depois do período da ditadura militar, as várias direitas foram institucionalmente integradas por Salazar numa organização: a União Nacional. Essa organização não tinha, entretanto, qualquer voz activa na definição da política do país: Salazar dominava o pensamento político, definindo uma espécie de ortodoxia nacional-corporativa que se ficaria mais pela letra que pela prática; e, como quase todas as personalidades dominantes e dominadoras, secou a concorrência no seu próprio campo.

Salazar era um homem de convicções e princípios sólidos mas estava pronto a adaptações. Fora do seu núcleo de convicções e princípios essenciais – a defesa da independência nacional, o catolicismo solidarista dos chamados “Papas Sociais” e um autoritarismo e decisionismo realistas inspirados no maurrasismo – era pragmático quanto a métodos e caminhos.

A esquerda, dominando hoje a História e o jornalismo de divulgação, ao contar a História e as “histórias da História”, adoptou, por estratégia interessada nuns casos e por ignorância noutros, a técnica da amálgama. Álvaro Cunhal, um leninista inteligente e que não hesitava em pôr a verdade factual ao serviço da Grande Verdade metapolítica do fim da História e da realização do Comunismo, seguiu sempre essa técnica, tentando reconduzir o Estado Novo à odiosa matriz nazi-fascista.

Ora, tal estava longe da realidade: foi também com pragmatismo que Salazar olhou, por exemplo, o fascismo italiano, identificando-se com ele numa perspectiva de combate comum contra o “perigo comunista”, em relação ao qual não via capacidade de resistência nas oligarquias constitucionais dos países do Sul europeu. Assim, aproximou-se do fascismo no anticomunismo e nalgum léxico político-insitucional “corporativo”, recusando também as pretensões das duas famílias políticas que o tinham apoiado, os monárquicos e os católicos, dizendo não à restauração dos Bragança e não à reversão da Lei da Separação.

Sobre este tema multiplicaram-se os escritos, sobretudo depois do 25 de Abril, tentando aproximar e comparar – para incluir – o que era dificilmente aproximável e comparável. Isto, mesmo depois de Hanna Arendt, uma pensadora política insuspeita de simpatias “fascistas” e muito menos nazis, nos ter vindo trazer uma distinção vital entre democracia, autoritarismo e totalitarismo, incorrendo no “pecado mortal” de aproximar o nacional-socialismo e o comunismo soviético na eliminação dos inimigos de raça ou de classe. Fosse como fosse, a propaganda conseguiu equiparar ao terrível modelo nazi, em termos teóricos e políticos, regimes como o salazarismo, o franquismo e o fascismo mussoliniano, regimes que, não sendo nem pretendendo ser democráticos, não eram totalitários, deixando espaço a alguma liberdade, nomeadamente na religião e na economia.

O Estado Novo de Salazar não foi fascista, até porque o fascismo é também um movimento revolucionário, populista, que tem um projecto de mudança de sociedade, um movimento que é também utópico, voltado para o futuro. O Estado Novo foi, sim, um nacionalismo autoritário e conservador, em que o poder político tinha por objectivo manter a sociedade como estava e conduzir controladamente e autoritariamente a nação e a sociedade por caminhos de que o desenvolvimento económico e o progresso social não estavam excluídos mas em que não eram os objectivos principais.

A resposta às ameaças

Estes objectivos principais eram a conservação da integridade do território, da independência e do poder nacional e da ordem social. A “ideologia” do salazarismo vai assim, pragmaticamente, moldar-se em função das circunstâncias e das ameaças. Daí o seu lado realista, pouco ou quase nada “ideológico”.

Saído de um período de perseguição republicana e democrática aos católicos e aos monárquicos – a Primeira República –, ameaçado pelo contágio da esquerda revolucionária espanhola e europeia e pelo “perigo comunista”, o Regime defendeu-se duramente nas ruas e através da propaganda e da repressão. E aliou-se aos fascismos em Espanha; mas, prezando sempre a independência nacional, manteve-se neutro na Segunda Guerra Mundial e passou, a partir de 1943, à neutralidade colaborante com os Aliados e futuros vencedores.

Entre 1946 e 1949, defendeu-se da ofensiva oposicionista unida e, a partir de 1954, estava já a pensar nas consequências para a unidade do Império Português das políticas descolonizadoras inscritas na nova ordem bipolar e nos seus textos fundamentais. Em 1958 foi o choque Humberto Delgado e em 1961 a intentona Botelho Moniz.

Salazar constata – com alguma pena, mas sem aparente surpresa – que os grupos base do regime, os monárquicos e os católicos, já então marchavam por outros caminhos. E verifica, a partir do Inverno de 1960-61, que os ventos da mudança sobre a Índia e Angola ameaçam o que era para ele mais importante – a unidade territorial do Império que, aceleradamente, tenta integrar. E aproveitando o choque na opinião nacional e popular causado pelos massacres da UPA no Norte de Angola consolida uma nova base político-social de apoio e renova, de certo modo e do modo certo, a sustentação do regime, que atingira o seu ponto mais baixo nas eleições de 1958.

É nesta conjuntura de 1961 que muita gente – adversária, indiferente e até inimiga – vai passar, por imperativo patriótico, a apoiar o regime. E Salazar, com sentido político, vai abandonar a agora caduca clivagem entre o conservadorismo político-social ordeiro e o progressismo democrático para se aplicar na invenção ou reinvenção de um patriotismo ultramarinista, em que possam caber tanto partidários como opositores. E é então apoiado por um sector “republicano histórico”, nostálgico da Primeira República, colonial e imperial.

Franco Nogueira – um percurso singular

É neste quadro que Franco Nogueira vai aceitar responsabilidades políticas no Governo. Não é nem nunca vai ser da União Nacional, nem ninguém lhe pede que o seja, e está ainda mais longe de ter qualquer espécie de simpatia e de identidade com linhas nostálgicas fascistizantes ou de nacionalismo radical e populista.

Tem, de resto, um conhecimento amplo do panorama literário da sua geração, marcado pelo Neorrealismo, crítico do Regime e da sociedade tradicional portuguesa. Os elementos do tradicionalismo direitista português – a Igreja, a Monarquia, o Integralismo Lusitano (onde aponta, em António Sardinha, condenáveis tendências iberistas) também não lhe são muito simpáticos. As suas afinidades literárias de esquerda são constantes e conhecidas e no seu Jornal de Crítica Literária há mais admiração por escritores como Gide, Malraux e Aragon do que pelos seus congéneres conservadores.

Mas a partir da sua entrada no Ministério dos Negócios Estrangeiros vê-se, nos relatórios coligidos por Fernando Castro Brandão, uma propensão para o realismo e para a Realpolitik com um imanente desprezo pela ideologia; atribui aos Estados uma espécie de instinto de sobrevivência ditado pelo interesse nacional, um “egoísmo” que faz com que as ideologias não mudem muito o fundo das coisas: assim, com Bismark, Stressman, Hitler ou Adenauer a Alemanha é sempre a Alemanha. Não bem a mesma, mas com alguma continuidade. Do mesmo modo, a Rússia, a eterna Rússia, continua de Ivan o Terrível a Pedro o Grande, de Lenine a Estaline. O que, em minha opinião, e com toda a amizade, respeito e admiração que sempre tive e tenho por Franco Nogueira, não será exactamente assim.

Nos anos cinquenta, Franco Nogueira passa a ter, com os ministros Paulo Cunha e Marcelo Mathias, um papel mais activo na política do MNE, na Repartição dos Negócios Políticos, cuja direcção-geral vai chefiar, a partir de Janeiro de 1959, por nomeação de Mathias.

Da presença nas frentes diplomáticas – em Nova Iorque e em Washington, como nas capitais europeias e em Lisboa – subirá para o Governo, depois do fracasso da intentona Botelho Moniz, em Abril de 1961. Toma posse em 4 de Maio.

A prática de uma política em que há uma nota de intransigência de princípio levará Franco Nogueira a aproximar-se progressivamente de outras bases e raízes ideológicas – as do nacionalismo conservador do Estado Novo. É naturalmente realista e, logo, propenso a ser sensível e até obediente ao imperialismo dos factos contra o idealismo das vontades.

A sua inserção no Regime e aceitação pela nomenklatura não foram fáceis. Alguns, mais vigilantes ou zelosos, não deixaram de se sentir incomodados pela chegada daquele republicano histórico e pragmático, quase “do Reviralho”. E a suspeita nunca passou: lembro-me que a participação de Franco Nogueira, quando Ministro, em reuniões do famoso grupo Bildeberg foi vista como um sinistro sinal de pertença ao colectivo secreto mundialista.

Mas a fronteira amigo-inimigo, para usar a terminologia schmittiana, já não era então direita maurrasiana tradicional ou do Estado Novo versus republicanismo partidário e maçónico da Primeira República; a grande dicotomia era então definida pela questão África-Europa, ou seja, ultramarinistas versus europeístas. Ainda que o ultramarinismo de Salazar e Franco Nogueira fosse menos um sentimento de pertença física, identitária, apaixonada (semelhante ao dos “Africanos” das campanhas de ocupação ou da Primeira República) e mais a convicção de que a perca de África, do Ultramar, traria a prazo riscos para a independência do país, diminuindo o poder nacional português em relação a Espanha e à Europa; ou seja, a ideia de que, sem as massas críticas africanas, o desequilíbrio peninsular poderia levar a uma progressiva integração no bloco ibérico. E mais, quer o chefe do Governo, quer o seu Ministro, tinham a convicção de que Portugal, privado de uma soberania político-militar assente nos tambores e nas bandeiras, não tinha capacidade de conservar a influência económico-cultural nos então territórios ultramarinos.

À luz do que veio a acontecer, talvez fosse um exagero e um erro. Mas foi este sentimento que levou o patriota constitucional e liberal Franco Nogueira a tornar-se, como defensor intransigente da unidade e integração nacional, um adversário da liberalizante evolução na continuidade de Marcelo Caetano. E, reflexamente, a tornar-se um anti-liberal, um anti-abertura e, a seu modo, um pós-salazarista, atrás do qual se concentravam os “ortodoxos” e radicais da direita. Se os havia…

Rectificações ideológicas

O que é que isto tem que ver com a situação que se vive hoje? Como entronca na suposta “crise das direitas partidárias nacionais”, assinalada pelo Presidente da República e ponto de partida de debate e discussão?

Primeira reflexão e conclusão: para mim, a chamada direita partidária ainda é a direita desenhada e permitida pela esquerda triunfante em 1974-75. Sintomaticamente, os seus líderes, por acomodação ou convicção ideológica, continuam a não admitir sequer o rótulo de “direita”, proclamando-se de centro-direita e até de centro-esquerda. Foi este “centro” que perdeu, este o centro que está em crise, até porque as suas bandeiras não conseguiram mobilizar o eleitorado que não votou na esquerda.

Daqui a dúvida de que estes partidos – mesmo se coligados em nome de uma frente anti-esquerda, evocando o fenómeno histórico e perfeitamente localizado da AD de Sá Carneiro – tenham compreendido a circunstância euroamericana ou as necessidades sistémicas de uma força à direita. Também por isso fraquejam.

A dicotomia direita-esquerda hoje, numa Europa marcada pelo esvaziamento do centro, pela fragmentação dos partidos e pela volatilidade dos eleitorados, tem menos que ver com questões relacionadas com a economia e com a propriedade do que questões de identidade colectiva: nacionalistas versus globalizadores, ou Europa das Nações versus Nação Europa. E tem também que ver com um combate ao progressismo civilizacional, com as políticas anti-vida, as micro-causas das minorias, a ideologia de género e o policiamento da linguagem em nome de um léxico de características orwellianas. Combate que os tais partidos da tal suposta direita que está em crise não partilham ou sequer referem.

No seu tempo, há 50 anos, Franco Nogueira, ao deixar de ser ministro dos Negócios Estrangeiros de Marcelo Caetano, escolheu a ruptura ideológica e as suas consequências. Mesmo não querendo ou não tendo sido capaz de organizar um partido ou movimento político que corporizasse uma alternativa, teve a capacidade de assumir, em nome do que entendia ser o bem público e o imperativo nacional, uma carga ideológica conservadora, e até aparentemente tradicionalista, que não estava na sua formação. Deu assim o salto ideológico da coerência.

Nesse sentido, depois da falência e do colapso do centro, talvez seja tempo de, a partir de dicotomias mais realistas, se definirem novas contradições e novas sínteses, capazes de configurar o que verdadeiramente está hoje em jogo na definição do território ideológico e doutrinário.

É por isso que digo que a evolução do pensamento político de Franco Nogueira, a sua passagem do patriotismo liberal ao nacionalismo realista em função da própria evolução da questão nacional, pode servir de tema de reflexão e de caminho de esclarecimento para o momento político actual.

Nota Final: Escrevi o texto que aqui adapto para a sessão de apresentação do livro “Tóquio”, de Alberto Franco Nogueira, que teve lugar no Instituto Diplomático do MNE a 24 de Junho. A apresentação do livro, propriamente dita, foi feita pelo Embaixador Freitas Ferraz.

Vale a pena ler “Tóquio” (Lisboa, Tinta da China, 2019), uma espécie de Diário de um ano, o ano de 1946, de um observador atento e fascinado que procura disfarçar, por pudor, essa atenção e esse fascínio. É um belo testemunho histórico numa escrita corrida, limpa, de guião de cinema, uma excelente crónica de um tempo pós-apocalíptico que dá à profunda humilhação dos vencidos convencidos um sentido de renascimento e ressurreição. Não nos podemos esquecer que os filmes americanos da Segunda Guerra, até “Tora, Tora, Tora”, trataram os soldados e os cidadãos do Império do sol-nascente como arqui-malvados: “evil yellow monkeys” merecedores do fogo dos lança-chamas dos Marines e da “humanitária” bomba atómica. E ainda que o nosso olhar acabe sempre por ser escravo do tempo e do lugar, ou por ficar, de alguma forma, “perdido na tradução”, Franco Nogueira consegue nunca tratar como cenário ou como figurantes as cenas e as figuras que em Tóquio nos vai dando a conhecer.