O conceito do “Paradoxo da Tolerância” é talvez das ideias mais famosas de Karl Popper. É irónico, mas não supreendente, que o conceito tenha sido mal interpretado, distorcido e usado para argumentar em favor do exacto oposto que Popper defendeu.

O paradoxo da tolerância tem sido difundido pelas redes sociais através de um cartoon que varia a mensagem de acordo com as motivações da fonte.

Existem duas versões do cartoon, a versão “nazi” e a versão “islamista”:

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O paradoxo da tolerância aparece na obra “A Sociedade Aberta e os Seus Inimigos”. No livro, Popper identifica e critica extensamente as ideias filosóficas que deram origem, na opinião do autor, aos movimentos totalitários do século XX. Todo o livro é uma defesa da sociedade aberta e pluralista, da racionalidade e do falibilismo.

A discussão sobre os paradoxos da liberdade, da tolerância e da democracia é feita no primeiro volume, “O Feitiço de Platão” (tradução livre), onde Popper argumenta que as raízes do autoritarismo e da tirania remontam a Platão (que defendeu a ideia do “tirano benevolente”). Mais concretamente, esses paradoxos são aludidos no capítulo “O Princípio da Liderança”. Nele, Popper tenta desconstruir a falácia da pergunta “quem deve governar?”, que dominou as teorias de soberania, e apresenta a sua solução para o problema, nomeadamente, a substituição pela pergunta “como podemos organizar instituições políticas de forma a que seja fácil retirar maus governantes do poder sem o uso de violência?” . Voltando a Platão, este invoca o paradoxo da liberdade para criticar o sistema democrático, referindo que o homem livre pode usar a sua liberdade absoluta para desafiar a lei, desafiar a própria liberdade e clamar por um tirano no poder. Nas notas a este capítulo (não no texto principal, diga-se) Popper refere o tal paradoxo da tolerância como outra manifestação do mesmo argumento. Transcrevo o texto (tradução livre):

Menos bem conhecido é o paradoxo da tolerância: tolerância ilimitada levará ao desaparecimento da tolerância. Se estendemos tolerância ilimitada até àqueles que são intolerantes, se não estamos preparados para defender a sociedade tolerante contra o ataque dos intolerantes, então os tolerantes serão destruídos, juntamente com a tolerância. Nesta formulação não pretendo dizer que devamos sempre suprimir a verbalização de filosofias intolerantes; conquanto que possamos contradizê-las através de discurso racional e combatê-las na opinião pública, censurá-las seria extremamente insensato. Mas devemos reservar o direito de suprimi-las, mesmo através de força; porque poderá facilmente acontecer que os intolerantes se recusem a ter uma discussão racional, ou pior, renunciarem a racionalidade, proibindo os seus seguidores de ouvir argumentos racionais, porque são traiçoeiros, e responder a argumentos com punhos e pistolas. Devemos pois reservar o direito, em nome da tolerância, de não tolerar os intolerantes. Devemos afirmar que qualquer movimento que prega a intolerância está fora da lei, e considerar criminoso o incitamento à intolerância e perseguição, da mesma forma que é criminoso o incitamento ao homicídio, ao rapto ou ao reavivar da escravatura.”

É compreensível que este parágrafo possa ser interpretado da forma que os cartoons acima o fizeram. Mas certamente não foi essa a intenção de Popper e qualquer leitura atenta de toda a obra o comprova.

O cerne da questão está na frase “não pretendo dizer que devamos sempre suprimir a verbalização de filosofias intolerantes; conquanto que possamos contradizê-las através de discurso racional e combatê-las na opinião pública, censurá-las seria extremamente insensato”.

Ou seja, enquanto possuirmos a liberdade política e a segurança para combater discurso que achamos abominável com argumentos que toda a gente pode ouvir, então usar coerção vai ser errado. Talvez a descrição de um episódio que Popper viveu, poucos anos antes de escrever o texto que aqui discuto, ilustre melhor este ponto, e talvez dê algum contexto às palavras de Popper.

Pouco tempo antes do partido nazi subir ao poder em 1933, Popper entabulou conversa com um jovem membro do partido Nazi, e após uma breve exposição de ideias, Popper pergunta-lhe qual é o seu contra-argumento, ao qual o jovem responde “o meu argumento? É este o meu argumento”, mostrando-lhe a arma que transportava.

Aí está. Um excelente exemplo de uma situação em que “o tolerante não pode tolerar o intolerante”. Mesmo que o Estado o tolere.

Outra perspectiva do problema parte da teoria política de Popper, que vê a democracia como um sistema que permite retirar um mau governante do poder sem ser necessário violência. É esse o mecanismo fundamental de “correcção de erros”, de falibilismo e de progresso, aplicado à política. E a sua perda é mais desastrosa do que qualquer outra coisa que um governante possa fazer. Consequentemente, uma situação na qual esse mecanismo está iminentemente ameaçado deverá suscitar a tal resposta coerciva/violenta dos “tolerantes”. Não antes.

É interessante avaliar algumas situações actuais através deste prisma popperiano. Por exemplo, é por demais óbvio que o Sr. Trump não vai continuar no poder após os seus dois mandatos (talvez até nem ao fim de um). Mesmo que ele tenha esse impulso, tal falha das instituições democráticas dos EUA é uma miragem. Apesar de todas as críticas justas que lhe são feitas, os EUA possui tradições e instituições democráticas cuja resiliência não deve ser menosprezada. Não foi por acaso que em 250 anos de existência os EUA nunca esteve perto de sucumbir ao autoritarismo. Portanto, neste caso, reacções violentas por parte dos “tolerantes” não se parecem justificar. Por outro lado, parece-me também óbvio que a situação na Hungria, membro da EU (convém lembrar), é uma em que o tal mecanismo fundamental de democracia está sob ameaça mortal, que deve motivar, segundo a minha interpretação de Popper, “intolerância para com os intolerantes por parte dos tolerantes”, porque de facto a tolerância corre o risco de desaparecer na Hungria. Com isto não pretendo fingir que sei o que deve um cidadão húngaro fazer nesta situação. Mas continuar o dia-a-dia habitual como se nada se passasse parece-me demasiado passivo.

Queria ainda mencionar o falibilismo (que por si só merece um texto) no que toca a esta problemática. Sucintamente, falibilismo é a posição de que todo o conhecimento é conjectural e susceptível de conter erros (assim como verdade), não havendo fontes ou autoridades possuidoras de verdade absoluta (ou “provável”). Esta posição epistemológica leva-nos a uma postura humilde sobre a imensidão da nossa ignorância (mas que de forma alguma debela o entusiasmo pelo progresso real já feito e pelo progresso que podemos alcançar). O falibilismo aplicado à política e à liberdade de expressão leva-nos a uma posição de abertura para ouvir ideias e críticas, independentemente da origem ou das putativas intenções de quem as profere. Porque não somos donos da verdade absoluta. Ninguém é. E se existe, por exemplo, um sentimento anti-imigração na nossa sociedade, eu quero ouvir os melhores argumentos dessa posição. E quero ouvir as melhores críticas à minha posição de pró-imigração. Quero essa oportunidade para “testar” as minhas convicções, quero essa oportunidade para quiçá rever ou alterar algum dos meus argumentos que afinal não era assim tão bom. Mas não quero pessoas com receio de expor ideias porque existe um castigo. Principalmente se essas ideias forem notoriamente falsas. Porque só através da crítica é que elas podem ser refutadas e alteradas. Não as devemos querer escudadas e protegidas por uma paliçada de silêncio. Porque esse sim é o caminho para o fim da sociedade aberta. Talvez seja tempo de aprendermos isso.