É uma coisa fácil de observar. O grau de imprecisão do vocabulário político de que constantemente nos servimos é enorme. Basta pensar em “direita” e “esquerda”. E a coisa tende, num certo sentido, a piorar quando entramos nas várias tendências que cada um destes campos alberga ou em posições que possuem ramificações em cada um deles, e que portanto os transcendem, como o liberalismo. O liberalismo é justamente um bom exemplo disto. A circunscrição exacta e perfeita – exacta e perfeita, sublinho – do que o conceito significa é uma tarefa literalmente infinita, quer dizer: impossível.

Isto não quer obviamente dizer que os conceitos sejam vazios ou sequer que não os possamos utilizar com sentido. É claro que têm conteúdo e que (com excepções, certamente) fazem sentido. O problema é que, como em praticamente todos os conceitos que respeitam à acção humana, o sentido é forçosamente ambíguo. Creio que até os comunistas, em momentos extraordinariamente reflexivos, suspeitam disso. Ou, pelo menos, deviam suspeitar. Porque se ter uma cartilha, o marxismo, pode dar o sentimento de se estar na posse de uma doutrina unívoca, a leitura de Marx faz imediatamente saltar aos olhos dificuldades, ambiguidades e até contradições.

Isto vem a propósito de um livro (publicado em Portugal pela D. Quixote, e, simultaneamente, no Brasil), Conservadorismo, da autoria de João Pereira Coutinho. Nesse livro, João Pereira Coutinho procura determinar o núcleo central do pensamento conservador. Ou, mais exactamente – porque, como ele diz, não há conservadorismo, há conservadorismos, no plural –, de um seu ramo, o ramo britânico, nomeadamente aquele que se inspira em Edmund Burke. O livro é excelentemente feito e aconselho aqui a sua leitura, até porque, dentro dos limites ditados pela natural equivocidade dos conceitos políticos, consegue de facto iluminar com detalhe os contornos principais da tradição burkeana que procura explorar e cujos mais importantes representantes contemporâneos (muito diversos entre si, de resto) seriam Michael Oakeshott e Roger Scruton. Vale a pena resumir muito brevemente o que o livro diz para depois chegar ao ponto que verdadeiramente me interessa.

Trata-se de uma tradição (que o livro mostra ser inteiramente distinta da tradição “reaccionária” de De Maistre) toda ela construída em torno da ideia da imperfeição da natureza humana. Não de um pessimismo antropológico à maneira de Pascal, mas de uma consideração atenta da nossa falibilidade. A consciência dessa imperfeição, nomeadamente da nossa imperfeição cognitiva, dever-nos-ia levar (tal é o cerne do conservadorismo que João Pereira Coutinho defende) a preferir, nas palavras de Oakeshott, o familiar ao desconhecido, o tentado ao não tentado, o facto ao mistério, o actual ao possível, o limitado ao ilimitado, o próximo ao distante, o suficiente ao superabundante, o conveniente ao perfeito, o riso presente à felicidade utópica. De acordo com o autor – que reconhece ser esta sua posição não partilhada por muitos pensadores conservadores contemporâneos –, tal conservadorismo seria compatível com a a tradição da “sociedade comercial” que Margaret Thatcher, inspirada em Hayek, teria defendido.

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Estas teses são importantes para o tipo de conservadorismo de que João Pereira Coutinho se sente próximo. Há ainda uma outra, no entanto, que, além de solidária com as restantes, é particularmente interessante, e que o autor vai colher em Samuel Huntington. Consiste ela em definir o conservadorismo, se concebido como uma ideologia, como uma ideologia “posicional” e reactiva, oposta às ideologias “ideacionais” e activas. Dito de outra maneira: o conservadorismo desdobra-se numa ideologia em determinados contextos e particularmente em contextos que suscitam uma reacção face a ideologias activas de transformação.

Ora, isto é de facto muito interessante. Porque, além de se enquadrar no tipo de conservadorismo que João Pereira Coutinho defende, é uma atitude partilhada por muita gente que não se definiria (é o meu caso, por exemplo) como conservadora. E, simultaneamente, é uma atitude com a qual é difícil viver de uma forma inteira.

No que diz respeito ao primeiro aspecto, a atitude reactiva é eminentemente aconselhável em política. Raymond Aron dizia há muito que em política não se escolhem os amigos: escolhem-se os inimigos. O que é um pouco dizer que a escolha política ganha, em muitos casos, em ser posicional e reactiva. É isso que a razão (não o racionalismo, para referir uma distinção que O Conservadorismo retoma) aconselha. E isso implica, em grande parte dos casos, uma reacção a certas transformações, nomeadamente aquelas transformações radicais que nos conduzem a uma destruição inteira dos elos sociais tais como os conhecemos.

Quanto ao segundo aspecto, também é verdade que, mesmo que apenas em matéria política, não é possível viver tal atitude de uma forma exclusiva. Definimo-nos sem dúvida por oposição aos outros, para retomar a ideia de Aron, mas não apenas por oposição aos outros. Pensamos contra os cortes radicais com o presente, mas não podemos pensar apenas assim. Até porque o familiar repousa num desconhecido originário, o facto num mistério, o actual presente num possível. Terá de haver sempre algo como um princípio interno da nossa acção – um conjunto de crenças positivas, e não apenas reactivas – através do qual nos projectamos no futuro. E esse princípio interno só pode conter em si uma aceitação de certas transformações, entre as quais um número indefinido de transformações que nada desejamos. Foi isso que Tocqueville viu, com uma ponta de melancolia, e, é claro, João Pereira Coutinho sabe-o perfeitamente.

No fundo, isso vê-se na vida de cada um de nós. Não pretendo de modo algum psicologizar as atitudes políticas, mas a vida das pessoas (e não estou a pensar particularmente na vida política) comporta fatalmente estes dois desejos: um desejo de preservação e um desejo de ir mais além, um desejo de mudança. Esses desejos são, algumas vezes, conciliáveis, mas, em grande parte dos casos, não o são, e vivemos na tensão daí resultante. Queremos a inteligibilidade que a tradição nos oferece – queremos, no presente, a presença do passado – e queremos, simultaneamente, algo mais do que essa inteligibilidade – queremos, Deus nos perdoe, um vislumbrezinho do ilimitado.

O livro de João Pereira Coutinho oferece uma defesa muito consistente do primeiro tipo de atitude. Mas contém igualmente, em filigrana, e às vezes explicitamente, uma compreensão da segunda, algo que também encontramos em Burke. Nem, de resto, poderia ser de outra maneira. Não se pode pensar a política sem procurar fazer sentido da coexistência destas duas posições em nós mesmos. O presente é um lugar difícil.