1 Recuperar a confiança
Em artigo anterior, vimos como, apesar de existirem diferentes abordagens teóricas ao fenómeno do populismo, há um entendimento comum sobre a sua estrutura básica: o populismo separa a sociedades em dois grupos opostos – a elite e o povo –, atribuindo-lhes uma diferente carga moral: a elite é sempre corrupta; o povo é sempre puro. Esta carga moral é de particular relevância, porque a narrativa populista procura usar as emoções para estabelecer uma relação de confiança com os eleitores – na verdade, tentando recuperar ou sarar a confiança política deteriorada.
Neste sentido, o populismo não pode ser entendido sem referência ao contexto atual mais amplo de crise da representação, que resulta da quebra de confiança no sistema político – fenómeno muito estudado e que revela uma relação apenas aparentemente paradoxal: as populações expressam um descontentamento crescente com o modo como os sistemas democráticos funcionam, embora continuem a expressar confiança na democracia enquanto regime político. Muito desse descontentamento resulta do facto de uma parte crescente da população sentir que a sua voz, os seus valores e o seu sentido de virtude – para usar a trilogia de Matthew Goodwin – não estão a ser politicamente representados. Em sentido contrário, os representantes parecem mais preocupados em avançar não só os interesses das elites económicas e culturais, liberais e globalistas, como também os seus interesses pessoais. E esta frustração tem sido especialmente direcionada contra os partidos, que revelam cada vez mais dificuldade em manter laços de fidelidade eleitoral.
É neste espaço de insatisfação que o populismo floresce, prometendo devolver a voz à população, ouvir as suas preocupações e recuperar a sensação de que os seus interesses estão a ser representados. Não é, por isso, surpreendente que um dos mecanismos tipicamente defendidos pelos movimentos populistas seja o referendo, como ferramenta para ouvir diretamente a vox populi (em particular, com a promessa de que o resultado será respeitado e as populações não serão submetidas a vários referendos até decidirem corretamente, ou não serão julgadas e insultadas por não terem decidido corretamente). E é nesta tentativa de ligação direta que os líderes populistas, quando chegam ao poder, tendem a adotar um estilo plebiscitário, procurando legitimar as suas decisões na voz do povo e recuperando, assim, a confiança perdida.
2Ser o porta-voz
Embora essa recuperação da confiança possa acontecer relativamente a um partido, na maioria dos casos a lógica populista acrescenta mais um elemento àquela estrutura básica: a existência de um líder forte, ou, para usar a palavra da moda, um líder carismático.
A importância do líder é um tema proficuamente estudado na literatura política e é fundamental para o estabelecimento de uma relação de confiança. Mas nos movimentos populistas revela-se mais do que isso: o líder não se apresenta apenas como alguém em quem confiamos para governar; ele deve estar em comunhão espiritual com a população e deve ser capaz de ouvir a maioria silenciada e de compreender as suas angústias. Até pode pertencer a uma elite, nomeadamente económica, mas o que importa é ele ser capaz de compreender o modo como as pessoas normais se sentem e pensam. Como o filósofo norte-americano Michael Sandel chama a atenção, Donald Trump é particularmente eficaz neste processo ao compreender os sentimentos de humilhação e ressentimento que são sentidos por tantos norte-americanos – provavelmente, por se ter sentido sempre desprezado e humilhado pelas elites sociais e económicas do país.
Nessa medida, o líder populista tende a assumir o papel de porta-voz dos descontentes, dos que se sentem excluídos das decisões, dos que se sentem silenciados, dos que se sentem esquecidos – todos aqueles que consideram que o sistema simplesmente não funciona por eles e para eles, ao contrário do que o princípio democrático proclama. E é por essa razão que os movimentos populistas tendem a assumir-se como antissistema – em especial, os populismos nacionalistas (ou de direita), que procuram representar as ideias desvalorizadas pelas elites progressistas. E como estas elites têm sido particularmente eficazes na imposição da sua visão do mundo e dos seus valores globalistas, os líderes nacionais-populistas tendem a rejeitar a mediação dos meios de comunicação tradicionais, por considerarem (e geralmente com razão) que eles limitam as suas narrativas políticas, e a explorar os canais alternativos fornecidos pelo mundo digital.
Nessa dimensão antissistema, os populismos constituem efetivamente uma ameaça (há que o assumir): quando se é porta-voz dos problemas que as elites políticas tendem a ignorar, as fragilidades do sistema são reveladas; e quando isso acontece, abre-se espaço à perda de legitimidade – como a criança faz quando diz que o rei vai nu.
3O problema do populismo
Depois de uma comoção exagerada como reação ao crescimento dos movimentos populistas (sobretudo os de direita), importa entrarmos numa fase menos emotiva e de avaliação mais racional, por forma a lidarmos eficazmente com os problemas que eles convocam.
O primeiro passo será o reconhecimento de que o populismo é uma reação normal ao funcionamento das democracias liberais (Margaret Canovan consagrou mesmo a ideia de que ele é a sombra permanente da democracia), em particular quando as democracias tendem a silenciar as preocupações de parte significativa da população, impondo-lhes uma moralidade como verdade absoluta ou esquecendo que existe um país para lá da capital e das cidades cosmopolitas. O populismo apresenta, nesta medida, uma clara vantagem: ao expressar essas preocupações, permite a identificação e a possível correção das deficiências e fragilidades do sistema. E isto significa que, sim, os partidos do centro devem incorporar a maioria destas preocupações, ao invés de ignorar que os problemas existem, condenando estas vozes como reacionárias, conservadoras, nacionalistas, racistas, xenófobas – e toda a lista de insultos que regularmente vemos no espaço público.
Mas o segundo passo consiste em sermos exigentes com os movimentos populistas, nomeadamente destacando o problema político imediato de se ser o porta-voz dos descontentamentos na crítica antissistema: é que esses descontentamentos resultam de insatisfações de natureza muito diferente, pelo que exigem, para a sua resolução, respostas complexas e soluções difíceis – e muitas vezes irreconciliáveis. Pensemos, a título de exemplo, nas reivindicações apresentadas pelos coletes amarelos em França: os seus protestos, profundamente descentralizados e orgânicos, careciam de uma estrutura que pudesse ser usada como exigência política consistente – e isso esvaziou a possibilidade de resolução dos problemas levantados. O mesmo acontece quando os líderes antissistema querem estar em todas as lutas: isso impede, ou torna extremamente difícil, a apresentação de um programa sistemático e coerente, com a consequência de não serem capazes de resolver o descontentamento e as angústias dos seus eleitores, pelo que acabarão por aumentar a revolta.
Assim, embora devamos reconhecer o mérito que resulta de o populismo dar voz a uma maioria muitas vezes silenciada, devemos também recordar que a política não se pode limitar a uma canalização de insatisfações. Devemos exigir que os líderes populistas e os partidos antissistema refreiem a sua ânsia de relação imediata e espiritual com o povo e assumam o papel de representantes, fazendo uso do princípio burkeano de não sacrificar o seu julgamento no altar do desejo dos seus eleitores. O mesmo é dizer que devem ser convidados a entrar no jogo democrático e demonstrar que são capazes de propor um projeto coletivo, com escolhas claras e definidas, pelo quais assumam responsabilidade.
Quem leu o excelente livro de José Pedro Zúquete sobre o tema sabe que o fenómeno populista em Portugal não é recente, nem foi inventado por André Ventura: o lastro populista e antissistema encontra-se enraizado na história política do Portugal contemporâneo, e de todas as vezes que floresceu acabou, como Ícaro, por queimar as suas asas e cair – o que leva Zúquete a prescrever como epitáfio populista: “Nós, um dia, fomos o futuro”.
Ora, considerando os resultados eleitorais de ontem, com um apoio eleitoral ao Chega tão significativo, estamos longe desse futuro-passado. Mais do que isso, não é possível continuar a excluir o partido da conversa política: devemos antes reconhecer a insatisfação e o descontentamento que ele revela e chamá-lo ao jogo democrático, recordando ao seu líder que não basta obter um bom resultado eleitoral – a política é muito mais do que isso.