1 A representação como confiança

Regressemos a Edmund Burke. Como vimos, devemos ao filósofo irlandês a conceptualização do mecanismo de representação, em particular no seu discurso aos eleitores de Bristol. Segundo Burke, os representantes (os deputados) estão necessariamente ligados aos seus constituintes:

“Os seus desejos devem ter um grande peso para ele; as suas opiniões, um grande respeito; os seus negócios, uma atenção sem reservas. É seu dever sacrificar o seu repouso, o seu prazer, as suas satisfações às deles – e acima de tudo, sempre e em todos os casos, preferir o interesse deles ao seu próprio.”

Mas,

“a sua opinião imparcial, o seu julgamento maduro, a sua consciência esclarecida, ele não deve sacrificar a vós, a nenhum homem, nem a qualquer grupo de homens. (…) O vosso representante deve-vos, não apenas a sua indústria, mas o seu julgamento; e ele trai, em vez de vos servir, se o sacrificar à vossa opinião.”

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Este entendimento é designado como representação de confiança: os eleitores depositam confiança num representante para que ele decida da melhor forma – e caso não fiquem satisfeitos com o seu desempenho, terão oportunidade, nas eleições seguintes, de escolher outra pessoa.

É este sentido de representação que permitirá amadurecer, primeiro nos Estados Unidos e depois na Europa, o regime de soberania popular que os gregos tinham cunhado como democracia. Os Founding Fathers norte-americanos conheciam bem a história e sabiam que a democracia dos antigos não era possível (devido ao tamanho dos estados modernos), nem desejável (devido à sua instabilidade e conflitualidade), mas reconheciam no povo a fonte do poder político, de acordo com a tradição contratualista. O mecanismo de representação permitia conciliar estas preocupações e desejos: a estabilidade e a qualidade da governação seriam garantidas pela escolha de representantes, mas sem esquecer que, nas palavras de Benjamin Franklin, “em governos livres, os governantes são os servos, e o povo, seus superiores e soberanos.”

Importa destacar que esta ideia tem um alcance superior ao do velho princípio liberal de “No taxation without representation”: esta fórmula visava opor-se à arbitrariedade dos monarcas absolutos, que procuravam impor impostos (atacando a propriedade, que, para os liberais, é um direito natural) sem o consentimento dos súbditos. Já o sistema democrático exige mais do que isso: exige que os representantes ouçam a voz dos cidadãos, reconheçam as suas preocupações e tenham em consideração a sua vontade e o seu interesse nas decisões políticas que tomam.

Foi este sentido de soberania popular enquanto democracia representativa que se tornou o mais importante mito no Ocidente após a Grande Guerra, garantindo a vitória perante os ataques inspirados quer na tradição marxista, quer na tradição fascista e das ditaduras conservadoras. E o sentimento de confiança na democracia representativa manteve-se forte nos anos que se seguiram ao final da segunda guerra mundial: os trinta anos de glorioso crescimento económico foram também gloriosos para a democracia representativa.

2 A crise da representação

Em Values, Voice and Virtue, leitura que devo a André Abrantes Amaral, Matthew Goodwin defende que essa relação de confiança se começa a degradar com a revolução liberal que, no final dos anos 70, se verifica quer nos valores, quer na economia. É, por um lado, o período das políticas económicas neoliberais, que geram profundas desigualdades económicas; é, por outro, o período da agenda liberal nos valores e na cultura, que começa a distanciar a elite progressista da moralidade comum.

Pela minha parte, arriscaria dizer que as raízes mais antigas se encontram logo no final da guerra, com a radicalização do ímpeto globalista e universalista do liberalismo. Encontram-se na criação da ONU, na aprovação da Declaração Universal de Direitos Humanos, na ambição de criar uma Europa unida numa organização supra-estatal. É este consenso pós-1945 que impõe os valores do globalismo, que se tornará económico e cultural, e menospreza as condições que permitiram o sucesso das democracias modernas, ligadas à existência de estados, com sentido de identidade e fronteiras definidas.

Este consenso corrompe a relação de confiança entre eleitores e representantes numa lógica que não é difícil de identificar: conforme os centros de decisão se vão afastando do contexto local (passando para a União Europeia, para instâncias internacionais, para empresas multinacionais), menos peso tem a voz dos cidadãos. (É também esta a tragédia do liberalismo: apesar de apelar à universalidade, só é democrático se se mantiver local.)

A crise da representação começa, assim, a manifestar-se nas últimas décadas do século XX, mas a grande erupção acontece com a crise económico-financeira de 2007/8 e a subsequente Grande Recessão, traduzida na Europa em crise das dívidas soberanas. A segunda década do novo século assistiu, por isso, ao crescimento político de um fenómeno que a teoria política se apressou a analisar: os movimentos populistas. Como Goodwin e Roger Eatwell chamam a atenção em Populismo: a revolta contra a democracia liberal, o populismo não nasceu com esta crise e era sintomático do crescente descontentamento com o estado da democracia antes dela. Mas é inegável que a crise económica veio reforçar as ansiedades democráticas no Ocidente.

3 A resposta populista

Embora o populismo seja um conceito essencialmente contestado, para usar a expressão de W. B. Gallie, há uma lógica esquemática que é comum ao pensamento populista, seja de esquerda, seja de direita: a ideia de que a sociedade se encontra dividida entre a maioria da população (o povo) e a elite, que é responsável pelas decisões políticas, tomadas de acordo com os seus interesses e menosprezando a vontade da maioria.

O populismo de esquerda entende que essa elite é essencialmente económica e explora a maioria trabalhadora (ainda que a viragem identitária se faça sentir cada vez mais). É a narrativa fundadora do Podemos, em Espanha, e que pode ser encontrada em certas formulações do Bloco de Esquerda, como Daniel Oliveira reconhece. À direita, esse esquema é geralmente pensado em termos de elite política vs. povo: as elites políticas, sujeitas aos interesses globalistas, quer económicos quer morais e culturais, agiriam não de acordo com o interesse e a vontade da população, mas para satisfazer essas agendas globalistas (e também, em última instância, os seus interesses pessoais – daí que a corrupção faça, quase sempre, parte deste discurso).

Embora o populismo de esquerda tenha relevância política (nomeadamente com Jean-Luc Mélenchon e Bernie Sanders), é o populismo de direita que mais tem crescido e que mais assusta jornalistas e comentadores (curiosamente, parece assustar muito menos a população). A análise que Goodwin faz em Values, virtue and voice, se bem que essencialmente dedicada ao contexto britânico, permite compreender esse crescimento: ele não é resultado de manipulação, desinformação ou ignorância dos eleitores – resulta antes da falência do mito democrático: uma narrativa que prometia dar poder às pessoas, expressar os seus valores, ouvir a sua voz e espelhar a sua noção de virtude, mas que deixou de o fazer. O populismo nacionalista aproveita esta falência, prometendo recuperar a relação de confiança perdida (se o concretizará, é outra questão e, provavelmente, outro texto).

Não deixa, por isso, de gerar incómodo a duplicidade de Daniel Oliveira quando diz:

“O populismo de esquerda e de direita são muitíssimo diferentes. Não são eticamente comparáveis e politicamente equivalentes. O primeiro não tem a exclusão e a desigualdade como objetivos e os mais frágeis como alvo.”

Esta duplicidade não é apenas intelectualmente frágil, uma vez que desconsidera todos os problemas que o populismo de esquerda apresenta, como sofre de uma fraqueza maior: a demonização do populismo nacionalista limita a nossa compreensão do que está a acontecer, tornando-nos incapazes de evitar as suas ameaças. Não permite, nomeadamente, compreender que a essência do populismo nacionalista não é a exclusão e a desigualdade: a sua essência reside na promessa de devolver a voz à maioria e recuperar a confiança no regime democrático. Ou, para usar a expressão de Norberto Bobbio, a sua força é o compromisso de concretizar as promessas não cumpridas da democracia.