Não creio que haja alternativa ao capitalismo, se por este entendermos o regime económico baseado na livre iniciativa e na justa concorrência. Sem dúvida que é o sistema económico que promove maior prosperidade material para um maior número, desde que – e já falarei disso – seja devidamente regulado pela política. O comunismo não é alternativa, a não ser talvez em pequena escala, na modalidade do cooperativismo local ou regional, para que a democracia e a comunidade de bens possa ser à escala humana, e por conseguinte mais funcional, limitada, e por isso menos suscetível às tentações do poder absoluto e da elitização que um coletivismo de massas sempre acarreta.
Quanto ao capitalismo (aqui tomado como sinónimo de economia de mercado), não há como suprimi-lo sem suprimir a própria liberdade individual. Os abusos eventualmente decorrentes da prática económica capitalista são, na essência, os abusos que potencialmente decorrem de qualquer liberdade que extravase os seus limites. O que há a fazer não é suprimir a liberdade em bloco, mas regulá-la melhor, assegurar que o estado faz o seu papel de garante da dignidade da pessoa humana e da inviolabilidade dos seus direitos. O que é necessário é garantir que a democracia funciona, que os três poderes mutuamente se fiscalizam de forma eficaz e transparente, que a representatividade é uma realidade, para que o ascendente legal, jurídico e ético da política sobre a economia não se perca, e o capital jamais se torne demasiado poderoso, ou sequer encontre ocasião para tomar o lugar da política ou corromper o interesse público.
É a democracia que deve ser aperfeiçoada, alargada, quer pelo aumento da representatividade do braço legislativo, quer pela melhoria da Justiça, quer pela profissionalização dos cargos de decisão executiva, quer pela promoção a sério da transparência nas decisões e processos, quer pelo cumprimento efetivo das leis que regulam os conflitos de interesse, quer de muitas outras formas. É preciso assegurar que a democracia não deriva em oligarquia, o que é sempre um risco, tanto nas sociedades capitalistas como nas comunistas. E assim deve ser tanto ao nível do estados particulares como dos grandes blocos políticos, com a Europa à cabeça. As instituições político-jurídicas supranacionais, tendo a pessoa humana como princípio e como fim, devem em conjunto assegurar que as grandes corporações transnacionais cumprem as leis e os regulamentos e, já agora, que não há privilégios de nenhuma ordem nem regimes de exceção que possam prejudicar os países economicamente mais desprotegidos, e mesmo a economia geral, como sejam os paraísos fiscais. Mas para tal as instituições têm de ter força, através da crescente integração política e do reforço do seu poder supranacional, sem descurar a representatividade e a transparência. Pesos e contrapesos.
Trata-se sempre, na política como na economia, seja no capitalismo, no comunismo ou em qualquer outro ismo, daquele problema há muito identificado por Lord Acton: o poder corrompe e o poder absoluto corrompe absolutamente. Assim, em qualquer sociedade, o que é preciso evitar é a excessiva concentração de poder num determinado setor, seja nas empresas ou corporações, seja numa elite política, seja numa qualquer minoria ou maioria. A tendência para o extravasar dos limites, para a dominação, para a hegemonia, para a exploração do homem pelo homem é infelizmente crónica na condição humana de todas as épocas. Basta ver como, logo que a lei ou a fiscalização fraquejam, logo que a ocasião se dá, conquanto nada se saiba, logo emergem casos de escravatura moderna, exploração, manipulação, corrupção, até mesmo entre nós, europeus integrados (refiro-me em particular aos casos de escravatura e tráfico de seres humanos, por exemplo, nas plantações intensivas de Odemira). O que quero dizer com isto é que, sempre que a regulação fraqueja ou a transparência falha, os abusos acontecem, a corrupção medra, seja num governo, de qualquer natureza ou cor, seja numa grande empresa. A pessoa humana é descartada, ou pelo menos secundarizada, em relação a interesses egoístas.
Ora, é evidente que a ética da bondade, da verdade, do respeito pelo outro como um outro eu; a ética da renúncia à dominação ou à exploração, a ética do amor, enfim, deve ser uma conquista pessoal, uma metanóia da nossa condição particular, sem coerção exterior de qualquer espécie. Depende da vontade humana e, para quem crê, da graça de Deus também. Num mundo finalmente redimido por tal ética, é evidente que a questão institucional da política ou da economia, a questão dos regimes, dos pesos e contrapesos, deixaria de ter qualquer sentido, porque não se levantaria sequer. Viveríamos no melhor dos mundos possíveis espontaneamente, no verdadeiro sentido da palavra anarquia (an + arké, i.e. regime no qual um poder central que governe e arbitre as relações entre os homens é desnecessário, pois os homens autogovernam-se sem conflito).
Contudo, no nosso mundo a regulação ainda é necessária, a nível estatal como a nível internacional, conquanto não destrua as forças vivas de cada sociedade, a criatividade, a iniciativa, o desejo de expressão e comunicação das realidades subjetivas, das mundivisões pessoais, que se pode materializar de tantas formas sempre benéficas para a comunidade em maior ou menor grau. Além disso, requer-se numa sociedade aberta e esclarecida que os vários elementos que a constituem mantenham entre si uma saudável vigilância, fraterna mesmo, para que o interesse público e a verdade nunca sejam profanados. Mas para tal tem de haver espaço para todos, cada um no seu lugar próprio, quer sejam o estado, as empresas, as associações, os partidos, as correntes de opinião, etc., sem tentações de expansão hegemónica ou de controlo que ponham em risco os direitos fundamentais das pessoas e as condições básicas para uma vida digna e com esperança. Desde logo, a sua saúde mental, o direito e as oportunidades de educação e formação, expressão e realização, acesso ao conhecimento, edificação moral e espiritual. Isto, sim, significa colocar a pessoa humana no centro da política, submetendo devidamente a liberdade geral – inclusive económica – a regras que sejam estruturantes da ascensão positiva do indivíduo em direção à sua própria humanização, evitando que este seja esmagado ou instrumentalizado pela máquina social e económica.
Que bom seria que se fizesse um pacto global – ou pelo menos europeu – neste sentido, numa espécie de reedição concreta da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, com todas as forças vivas das sociedades, políticas, culturais, económicas e outras, a comprometerem-se com o seu papel específico para a finalidade global da humanização do Homem!