Na semana em que Portugal atinge o maior número de mortes e contágios Covid-19 por milhão de habitantes e desce nos rankings internacionais que medem a qualidade da democracia e os níveis de perceção de corrupção, fez furor nas redes sociais um gráfico publicado num post do partido do Governo, no qual se comparam os índices de vacinação de Portugal com a média observada na União Europeia. Este gráfico, que usa de forma conveniente o ponto de cruzamento dos seus eixos, fez que uma diferença de apenas 7% tivesse a aparência visual de quase o triplo na eficácia na vacinação portuguesa, pelo que gerou uma forte indignação pelo exagero e despropósito da imagem de propaganda que transmitia. Mas, infelizmente, este não foi um caso único. É apenas mais um exemplo da regra que orienta a atual comunicação política, na qual a forma prevalece, normalmente, sobre a substância. Uma regra que se está a tornar num dos piores e mais perversos hábitos da forma como se faz política nas atuais democracias.

Hoje, em todo o mundo, os líderes políticos parecem mais preocupados com a rapidez e assertividade dos seus tweets e dos seus índices de notoriedade instantânea do que com o grau de execução dos seus programas e compromissos eleitorais. A sociedade da comunicação global assim o exige, apesar de todos sabermos que isso desfoca e condiciona a ação política. Por serem dolorosas, disruptivas e com efeitos demorados, poucos são os líderes que investem o seu tempo e arriscam o seu capital político na procura de curas totais para as doenças reais do país, preferindo procurar terapêuticas mais simples e rápidas, mas que apenas melhoram temporariamente os sintomas das doenças. Quando se está a decair em matérias estruturantes para o futuro e não se tem ou não se quer arriscar soluções para os problemas reais das pessoas, pode continuar-se a disfarçar e a condicionar a perceção da opinião pública com permanentes presenças no espaço mediático e alguns golpes comunicacionais sobre posicionamentos conjunturais. Geralmente é suficiente e eficaz. O presente é hoje, as necessidades e os objetivos dependem das circunstâncias, o futuro logo se vê. Citando Wittgenstein, “O que se pode dizer pode ser dito claramente, e aquilo de que não se pode falar tem de ficar no silêncio”.

No entanto, esta estranha e perversa alteração de focos e de prioridades diminui a exigência sobre a competência e adequação dos agentes políticos, partidariza o funcionamento do Estado e torna a governação fechada e demasiada egocêntrica e autoelogiosa. Como consequência, mediocriza-se a qualidade geral da democracia, gera-se desconfiança e descrença na atividade política e perdem-se oportunidades para mobilizar as melhores pessoas em torno de soluções estruturantes para o país.

Ao contrário da administração privada, onde o principal escrutínio e discussão sobre a qualidade da governação acontece a posteriori, no momento da prestação de contas, na administração pública esse momento acontece normalmente a priori, aquando da aprovação do Orçamento. Neste contexto, mais importante do que avaliar e justificar o cumprimento e os resultados globais alcançados, o que mais mobiliza a administração pública é a discussão das opções orçamentais e as promessas do que se propõem vir a fazer. Embora todos concordemos que focar a discussão no futuro é a essência da governação pública, quando se desvaloriza em excesso o acompanhamento e a avaliação transversal do grau de execução dos programas e opções orçamentais, corre-se também o risco de o Orçamento e da sua execução se transformarem num instrumento circunstancial de propaganda e de negociação e tática político-partidária mas sem grande eficácia efetiva. De que vale o anúncio mediático de grandes medidas, se, no final, os impactos e os benefícios procurados não forem atingidos?

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Uma das maiores surpresas com que me defrontei quando exerci funções autárquicas executivas em Lisboa, foi o número de propostas de alterações orçamentais que eram submetidas para aprovação em reunião de executivo. Em média, cerca de duas por mês!  Para quem, como eu, tinha tido experiência profissional no processo de coordenação e acompanhamento orçamental de grandes empresas, aquela situação, apesar de me ter sido explicada como historicamente normal, causou-me incómodo e estranheza! Tantas mudanças significavam não só um deficiente planeamento na construção do orçamento como, principalmente, permanentes alterações de prioridades políticas para dar respostas conjunturais de efeito e alcance limitado e normalmente tático ou corporativo. Um desfoque com prejuízo no cumprimento das linhas orientadoras do programa eleitoral que tinha sido proposto. No entanto, quando chegava o momento da apresentação da conta de gerência, a discussão sobre a execução orçamental nunca despertava grande interesse ou impacto político, sendo essencialmente vista como um pró-forma legal de natureza técnica e administrativa. Exatamente ao contrário do que normalmente acontece nas empresas. Nestas, não importa muito as novas promessas que se fazem ou a notoriedade momentânea que se tem. Se no momento da avaliação final os objetivos iniciais não foram cumpridos, normalmente só resta um caminho. O da saída.

É por isso importante, que enquanto cidadãos sejamos também mais exigentes com a prestação de contas sobre os resultados efetivos da ação governativa. Que saibamos preferir mensagens e promessas mais realistas ainda que menos ambiciosas e entusiasmantes, e a dar a devida importância relativa às mensagens político-partidárias sobre conjunturas apoteóticas, mas apenas circunstanciais.  E que, no final, queiramos e procuremos estar mais bem informados para julgar sobre os resultados obtidos e as suas verdadeiras causas ou méritos.

Caso contrário, se continuarmos a desatender à importância de se aumentar o escrutínio público sobre o cumprimento real das promessas eleitorais efetuadas, não tenhamos dúvidas, iremos ajudar a continuar a perpetuar hábitos despreocupados com a resolução estruturante e transformadora dos reais problemas das pessoas. E isso não é smart.