Em 2021, Marcelo Rebelo de Sousa criou um precedente que hoje se traduz numa verdadeira embrulhada política. Naquele ano, o Presidente da República decidiu que a rejeição do Orçamento de Estado implicaria o fim imediato do Governo, porque o OE era um pilar essencial da estabilidade governamental, crucial para a sustentabilidade da legislatura. Recorde-se que o PS tinha uma posição parlamentar bem mais confortável do que a do PSD hoje e com uma maioria clara à sua esquerda, com quem tinha garantido a estabilidade de uma legislatura completa, de 2015 a 2019. Terá sido o sucesso desses quatro anos que levou Marcelo a cometer o primeiro erro: não exigir um novo acordo escrito em 2019. Quando a “geringonça” deixou definitivamente de funcionar em 2021, Marcelo Rebelo de Sousa sabia que poderia ser coresponsabilizado por não ter pedido mais garantias de sustentabilidade. E, por isso, quis precaver-se atempadamente: semanas antes de o Governo apresentar a sua proposta de OE, dizia para quem o quisesse ouvir que, se o Orçamento não fosse aprovado, dissolveria a Assembleia da República. Dito e feito.
Hoje, o cenário é bem diferente. Desde logo, Marcelo Rebelo de Sousa tem adotado uma postura muito mais ambígua em relação à aprovação do Orçamento de Estado do que em 2021. Aquilo que antes era claríssimo para Marcelo é agora menos óbvio. Em vez de manter a clareza de 2021, o Presidente da República tem optado por manter várias possibilidades em aberto, mas parece estar sobretudo a preparar o terreno para aquela que poderá ser a sua maior cambalhota presidencial: deixar que o Governo continue em funções mesmo que o Orçamento seja rejeitado.
É por isso surpreendente que até agora nenhuma figura política do PS tenha vindo exigir a Marcelo Rebelo de Sousa uma coisa simples: a mesma clareza de 2021. Atenção que não se estaria a pedir sequer coerência no conteúdo, apenas a exigir que houvesse a mesma clareza quanto ao que fará o Presidente da República em caso de rejeição do OE. Era o mínimo indispensável para preservar em Belém algum sentido de Estado.
A atual situação política é também diferente porque, em março deste ano, após as eleições legislativas, o PSD assumiu o governo com uma maioria mais instável do que aquela que o PS tinha em 2021. Ainda assim, Marcelo Rebelo de Sousa decidiu empossar novamente um Governo sem contrapartidas ou exigências de entendimento parlamentar prévio. Não era difícil prever que, chegados a esta altura do ano, estaríamos a discutir as probabilidades de aprovação do Orçamento e, por uma questão de “jurisprudência marceliana”, a continuidade do próprio Executivo. Foi o PR que considerou que havia condições para Luís Montenegro formar Governo, logo é também a Marcelo que devem ser exigidas explicações quanto às garantias que lhe foram dadas em março. Houve sequer garantias?
A clareza meridiana que costumava residir em Belém está agora em parte incerta. O que é, à primeira vista, um problema para o PS – que, sem saber o que o PR fará em caso de chumbo do OE, pode ser responsabilizado por uma crise política para a qual está a ser inevitavelmente empurrado. Mas é uma oportunidade para denunciar quem está a dar esse empurrão e agir em conformidade. Se o Presidente da República não consegue ser claro e continua a dar sinais de que o chumbo do OE não implica uma dissolução da Assembleia da República, o PS deve sentir-se livre para agir com base nas suas convicções políticas, votando o OE em consciência e sem participar numa negociação que mais não seria do que uma perda de tempo. Sem táticas políticas – não foi com isso que Pedro Nuno Santos prometeu?
Desde que chegou ao Palácio de Belém, Marcelo Rebelo de Sousa está a orquestrar um jogo duplo onde a estabilidade política é sacrificada a cada jogada e a ambiguidade se consagra como a grande vencedora. O PS não se deve deixar levar sem pelo menos denunciar aquilo que está à vista de todos. Jogar para o curto prazo é seguir as regras de Belém. Regras essas que, até agora, apenas trouxeram uma constante a todos os Governos empossados por Marcelo Rebelo de Sousa: instabilidade. Sempre foi esse o programa do Presidente da República, porque é com esse programa que Marcelo se sente à vontade. Não estará na altura de virar o jogo?