Não faltam argumentos para que se qualifique José Sócrates como a figura mais nociva para o funcionamento e prestígio da democracia portuguesa. É suspeito de fuga ao fisco, branqueamento de capitais e corrupção. Reconheceu publicamente que, enquanto primeiro-ministro e depois, viveu na dependência financeira de um amigo cuja empresa assinou vários contratos com o Estado. E autoproclamou-se preso político, questionando a separação de poderes, atacando a Justiça e acusando-a de estar a mando dos partidos da direita. Em países onde a democracia se leva a sério, qualquer uma destas condições valeria a sua imediata ostracização. Por cá, a história é outra: depois de por calculismo eleitoral ter mantido distâncias, o PS aceitou agora ser o palco da reabilitação de Sócrates. É uma questão de (falta de) ética? Sim, evidentemente. Mas, com o PS consolidado no poder, é também uma questão política: ao dar a mão a Sócrates, o PS está implicitamente a reabilitá-lo e a avalizar o seu combate contra a Justiça.

Sócrates percebeu há muito tempo que a sua ascensão no espaço público e no palco político são condições determinantes para se proteger das suspeitas e futuras acusações. Quanto mais poderoso ele surgir, mais difícil será de o abater. E quanto maior o ruído, mais fácil será de passar a sua mensagem de descrédito da investigação e das autoridades judiciais. Ora, pelo mesmo raciocínio que levou a considerar-se um preso político, o ex-primeiro-ministro pretende hoje converter o PS (as suas redes partidárias, a sua influência na sociedade e no mundo empresarial e o seu poder no governo) num instrumento de defesa, institucionalizando a sua narrativa através dos socialistas. Que assim o deseje, não surpreende. Que o PS assim o permita, justifica apreensão.

A estratégia não é nova: desde o primeiro dia em que se viu nas mãos da Justiça que Sócrates ambicionou escudar-se no PS. A novidade é que, até hoje, o PS havia-se recusado a colaborar na conspiração. Recorde-se, por exemplo, que, quando em prisão preventiva, Sócrates fez circular ruidosos recados de desagrado face à actuação dos socialistas e, em particular, de António Costa, que em período eleitoral fugiu dele como o diabo da cruz. Sócrates criticou o seu partido porque exigia ao PS que estivesse do seu lado, ecoasse a sua mensagem e, como tal, fosse seu cúmplice na estratégia de defesa. Nada feito. Até que, após vários meses de encontros mais ou menos discretos, o PS deixou de se inibir e exibiu-o como protagonista num dos seus eventos. Ficou claro o peso da influência que ainda tem junto do núcleo duro do PS e como isso o aproximou do seu objectivo. Sem a oposição de António Costa.

Politicamente, isto tem repercussões. Tudo isto nos leva à perigosa constatação de que, com o PS no poder e a influência de Sócrates no partido a crescer, ressuscitarão velhos fantasmas de interferências políticas na Justiça. De redes e teias de agentes económicos que, no mundo empresarial e na comunicação social, abrem as portas aos interesses socráticos. E, ainda, receios de que, no PS que tantos validam como o partido do regime, se tolerará crescentemente o deteriorar da imagem da justiça na sociedade portuguesa. É claro como água: Sócrates precisa de condenar a justiça antes que a justiça o condene a ele e tem, pela primeira vez, o PS do seu lado. Porque, ninguém duvide, não é possível dar palco a José Sócrates e não ser cúmplice dos ataques a juízes e Ministério Público que ele executa. Tal como não é possível promover a sua reabilitação sem desvalorizar as suspeitas de que é alvo ou as dependências financeiras que assumiu. Não existem áreas cinzentas. E o PS sentou-se do lado errado do combate democrático.

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