Houve um tempo, a comunicação social era considerada um quarto poder. Queria com isto dizer-se, no âmbito de uma democracia e face ao conceito de separação de poderes, que o poder da comunicação social era importante e tinha um valor próprio e autónomo, face aos poderes executivo, legislativo e judicial. Esta autonomia da comunicação social fazia dela uma espécie de contrapeso autorizado, informando, dizendo os não ditos, desocultando o que se queria esconder, denunciando, criticando, defendendo causas. Esta nobre missão enriquecia a democracia, tornava-a melhor. Uma missão praticada através das diferentes categorias de trabalho jornalístico, nomeadamente, a notícia, a reportagem, a entrevista, a crónica. A comunicação social afirmava-se como um poder independente, livre. Estes atributos estavam ligados a um forte quadro de valores editoriais, à existência de autonomia financeira e de regras que protegiam a liberdade de imprensa.
Este quadro exigia, naturalmente, bons profissionais, qualificados e bem remunerados, com capacidade e poder de equidistância de poderes políticos e económicos e impermeáveis a amiguismos e agendas de grupos.
Uma comunicação social assim, no período pré-internet, era muito valorizada pela população, que lhe reconhecia um valor de verdade, procurando, através dela, ter uma visão atualizada sobre os acontecimentos e a sociedade. Depois, no dealbar da internet, as notícias online eram consideradas como verdade pura e dura. Com o avançar das redes sociais, a ideia de verdade diluiu-se e hoje, não só se suspeita da veracidade de tudo, como se acredita em tudo, num relativismo que gera insegurança e sectarismos vários.
A comunicação social, pura e responsável, nunca existiu a 100%, como nunca existiram a 100% poderes executivos, legislativos e judiciais 100% isentos. Todavia, tendencialmente, diversos órgãos de comunicação social (nem todos) correspondiam ao modelo referido, assim como os seus agentes.
O estado de “pureza institucional”, se, nunca existiu, hoje, está mais diminuído.
Porque muitos órgãos de comunicação social perderam tanto a prática de um forte quadro de valores editoriais como autonomia financeira e encontram-se confrontados com um mercado fortemente competitivo e cada vez mais contaminado pela sociedade espetáculo.
Foi-se alargando a tendência para diluir as margens entre notícia e texto de opinião, exposição da realidade e exposição de uma parte da realidade, explicação isenta das diversas agendas públicas e defesa de agendas de grupos específicos, promoção de figuras que o merecem e promoção de amigos, ou ataque a inimigos.
Um jornalista omitir, conscientemente, parte da realidade, distorcendo o sentido dos acontecimentos, ter, quando elabora textos, amigos ou inimigos, valorizar certos grupos em detrimento de outros, de acordo com as suas afinidades eletivas, agendas ou para aumento das tiragens/visualizações, é coisa que não devia acontecer.
Claro que os jornalistas têm as suas perspetivas pessoais, os seus amigos e aqueles que não gostam. Claro que os órgãos de comunicação querem alargar as suas audiências. Mas quais os limites, no que respeita ao exercício da profissão?
Ao mesmo tempo, uma administração, uma direção de um órgão de comunicação social pode dar indicações diretas ou indiretas às redações, para valorizar determinada empresa ou deixar de a criticar só porque esta é um dos seus suportes de publicidade ou tem interesses acionistas?
Ou um cameraman pode colocar câmaras em ângulos para dar melhor ou pior imagem de um entrevistado ou numa reportagem só porque ele ou o jornalista que assiste decidem valorizar ou desvalorizar a imagem de alguém face a certas agendas a que aderem?
Será que as redações, as direções, os técnicos podem fazer o que querem, arbitrariamente, pois o que não pode ser provado fica fora de qualquer escrutínio?
Jornalismo é Poder. E como todos os poderes, pode ser bem ou mal usado. A responsabilidade do seu exercício é partilhada por proprietários, administrações, direções, jornalistas e técnicos de apoio. Esta responsabilidade solidária nem sempre se exerce coerentemente, nem sempre existe uma cultura organizacional e padrões éticos elevados.
Exemplos de distância entre a realidade e os “factos” relatados por órgãos de comunicação social, deturpação da realidade, indução em erro?
Teria muitos para dar. Casos que aconteceram com terceiros e também situações que me respeitaram. Todavia, dar exemplos concretos só serve para colocar os jornalistas na defensiva, ou, pior, para colocar os jornalistas ao ataque. Infelizmente, muitos profissionais não sabem distinguir entre debate público e ataque pessoal.
Entretanto, na maior parte das situações noticiosas que desvirtuam a verdade das coisas, o público em geral não se apercebe delas, pois falta-lhe a informação suficiente para saber qual é a informação que lhe falta.
Ninguém pede que a comunicação social seja neutra (embora peçamos que não seja capciosa). Todavia, quando o não for, exige-se uma declaração de interesses – dizer a favor de quem ou contra quem se está, de maneira inequívoca, honesta.
Este texto não pretende demonizar a comunicação social, nos tempos conturbados que vivemos, neste ano que começa com perigos vários acrescidos para as democracias e a liberdade de expressão. Um Quarto Poder forte é essencial.
Pretende-se chamar a atenção para a necessidade de melhorar atitudes e procedimentos. Consciente de que, evidentemente, há muitas administrações, direções, jornalistas, técnicos, que se encoram em princípios éticos sólidos e práticas adequadas.
Consciente da existência de números elevados de profissionais da comunicação social a perder a vida em cenários de guerra, a ser reprimidos em regimes autoritários ou a viver em condições financeiras difíceis.
O voto que faço para 2025? Que, como mostram as estatísticas, a comunicação social não se continue a desacreditar, a favor de influencers e redes sociais. Que haja condições éticas, sócio-económicas e políticas para o seu sucesso e autonomia.
Precisamos muito do Quarto Poder – desde que se afirme como tal e não como mera extensão não assumida de um outro poder qualquer.