O Grande Incêndio Florestal (GIF) de Pedrógão Grande, que ocorreu no fatídico dia 17 de junho de 2017, é unanimemente considerado como um Incêndio especialmente excecional, já que pela primeira vez na Europa se desenvolveu uma tempestade de fogo sem precedentes, e é consensualmente qualificado como um incêndio de 6.ª geração, também designado Extreme Wildfire Event (EWE). i.e., um incêndio imprevisível e inatacável durante o período em que manteve aquelas características.
O GIF de Pedrógão Grande veio confrontar-nos com uma nova realidade que até então Portugal não tinha evidenciado, não havendo, por isso, conhecimento prático das suas exigências.
De acordo com os especialistas, esta nova realidade que aquele incêndio nos trouxe, face ao seu comportamento extremo e ao seu nível energético absolutamente anormal, não se coaduna com as táticas de prevenção e de extinção tal como as entendíamos nos últimos 30 anos. Simplesmente não funcionam, pelo que não se pode avaliar um sistema concebido para um tipo de incêndios quando se enfrenta uma outra realidade, até há pouco absolutamente desconhecida. Há, pois, que aceitar esta nova realidade e adaptar a resposta.
A tragédia de Pedrógão Grande repetiu-se em outubro do mesmo ano, apesar de os respetivos incêndios terem exibido características bastantes diferentes, reforçando a ideia de que estamos perante um novo tipo de incêndios.
Foi esta realidade que a Comissão Técnica Independente (CTI), criada na sequência dos grandes incêndios ocorridos nos concelhos de Pedrógão Grande, Castanheira de Pera, Ansião, Alvaiázere, Figueiró dos Vinhos, Arganil, Góis, Penela, Pampilhosa da Serra, Oleiros e Sertã, entre os dias 17 e 24 de junho de 2017, para apuramento dos factos relativos àqueles incêndios, não soube (ou não quis) perceber, naquilo que diz respeito à componente da resposta operacional.
Como já referi publicamente, várias vezes, esta CTI relativamente ao Combate, em resultado de uma deficiente avaliação relativamente à resposta operacional, com afirmações falsas e/ou afirmações tendenciosas e que não mereceram o respetivo contraditório de quem tinha essa responsabilidade, levou o país a pensar que o problema do Dispositivo de Combate aos Incêndios Florestais era um problema de competência técnica e não um problema estrutural.
Aliás, esta mesma CTI, cuja composição e respetivos destinos merece a nossa melhor atenção (quem eram, para onde foram, que interesse tinham na questão), elaborou um relatório que em tribunal, no que diz respeito à resposta operacional, resultou numa manifesta e incompreensível (ou talvez não) incapacidade, por parte da maioria dos elementos da CTI que prestaram testemunho, de explicar o teor do próprio relatório tendo mesmo, quase todos, muitas vezes, contradito aquilo que está escrito, e, outras vezes, assumido absoluto desconhecimento da área operacional como justificação para aquelas contradições. Nada disso, porém, os inibiu de subscreverem um documento daquela importância, fazendo crer que o seu teor era resultado da concordância de todos.
De referir, ainda, que MARC CASTELLNOU RIBAU, doutorado em física atmosférica da Universidade de Wageningen, Holanda, e perito do Instituto Florestal Europeu, entre outras relevantes competências, que também integrou a CTI, afirmou em tribunal que “até ao dia em que aconteceu o incêndio de Pedrógão Grande nunca tínhamos visto isto, não acreditávamos nisto, nunca tínhamos visto aqui na zona mediterrânica um fenómeno destas características”. E, na mesma sede, questionado se havia forma de comunicar com as populações para lhes transmitir que deviam ficar em casa, disse ainda que “no momento de 2017 não era possível imaginar isso e se não era possível imaginá-lo não era possível comunicá-lo nem pensar em estratégias”. Pena é que a CTI, também neste aspeto, não tivesse refletido estas declarações no seu relatório.
Esta falsa perceção, que, sem dúvida, foi criada por aquela CTI, levou o país a ter um Comandante (o primeiro Comandante de um CB a chegar ao Teatro de Operações) arguido, com uma acusação pesadíssima, de 63 homicídios. E, mais, aquela falsa perceção é também responsável pelo facto de, passados 5 anos, continuarmos a ter um Dispositivo de Combate que, não obstante existirem hoje mais meios, se depara com imensas dificuldades face a uma nova geração de incêndios, que, em resultado das alterações climáticas de todos conhecidas, têm capacidade de gerar velocidades e intensidades de propagação extremas.
Como foi publicamente divulgado pelos Órgãos de Comunicação Social (OCS) da altura, pedi a minha demissão de Presidente da Autoridade Nacional de Proteção Civil (ANPC) no mesmo dia que a Sra. Ministra da Administração Interna (MAI). Na carta de demissão que enviei à MAI, que foi tornada pública pelos OCS, referi que “foram ditas muitas inverdades ao longo dos últimos meses sem que fossem criadas as condições para as desmentir, tendo assim, sido posto em causa o bom nome da Autoridade Nacional de Proteção Civil e em especial o dos profissionais da sua estrutura operacional, aos quais aqui reconheço publicamente o seu valor e sentido de dever”.
Foram precisamente “algumas” dessas muitas “inverdades” – a que provavelmente deveria ter chamado “mentiras” – que a própria imprensa escrita fez eco, referindo que a “ANPC aponta erros, omissões e contradições” ao relatório da CTI, que os responsáveis do setor não souberam perceber, já que, lamentavelmente, não quiseram sequer ouvir quem deveriam ter ouvido. Ao invés, assumindo esta convicção que a CTI criou como verdadeira, fizeram reformas sem sentido, sem rumo, sem ambição, e que nos levaram, passados 5 anos, ao estado que neste Verão todos temos assistido.
Todos temos a consciência de que o ano de 2017 foi um ano muito doloroso para o País, e em especial para os cidadãos que perderam os seus familiares naqueles dois trágicos incêndios, mas eu fui testemunha do esforço, do empenho, da dedicação, da dor, do sofrimento de toda a estrutura operacional da ANPC, dos homens e mulheres que deram tudo o que tinham para que não acontecessem aquelas tragédias, infelizmente sem sucesso. E também é minha obrigação elogiar o esforço, a entrega e a abnegação dos nossos Bombeiros, que em todos os momentos deram o seu melhor, e, todavia, infelizmente, vêem ainda hoje um dos seus como arguido, sentado no banco dos réus em tribunal, ante uma acusação pesadíssima e, do meu ponto de vista, injusta.
Como já referi publicamente, várias vezes, o ano de 2005 constituiu um marco importante na história recente da Proteção Civil em Portugal. Todos nos lembramos que nesse ano o MAI (atual Primeiro-Ministro), criou a Autoridade Nacional dos Incêndios Florestais (ANIF), que eu integrei, para no período de maio a outubro desse ano apresentar a avaliação da situação e propostas para responder às situações que o país estava a viver naquele período.
Relembro que, fruto desse trabalho, que procurou soluções concretas e não “bodes expiatórios”, em 2006 foram publicados e operacionalizados os seguintes diplomas: a Lei n.º 27/2006 (Lei de Bases da Proteção Civil), o Decreto-Lei n.º 134/2006 (Sistema Integrado de Operações de Proteção e Socorro), a Resolução de Conselho de Ministros n.º 65/2006 (Plano Nacional de Defesa da Floresta Contra Incêndios) e o Decreto-Lei n.º 124/2006 (Sistema Nacional de Defesa da Floresta Contra Incêndios). Também em 2007 foi possível publicar e operacionalizar a Lei n.º 65/2007 (Enquadramento da Proteção Civil Municipal), o Decreto-Lei n.º 75/2007 (Lei Orgânica da ANPC), um programa de reequipamento dos Bombeiros, as novas Diretivas Operacionais Nacionais (DON) e o Plano Especial de Emergência do Risco Sísmico da Área Metropolitana de Lisboa (PEERS-AML), entre outras medidas de grande importância.
Como é fácil de perceber, após uma avaliação objetiva elaborada em 2005, em apenas dois anos mudou-se o sistema de Proteção Civil em Portugal, que em 2008 foi apresentado em Bruxelas como um modelo de sucesso, e foi implementada uma ambiciosa estratégia para a floresta, diploma que manteve a sua atualidade até ao ano de 2017.
O ano de 2017 veio, claramente, alertar o país, da forma mais dura possível, que o sistema de combate aos Incêndios Florestais merecia uma nova avaliação, tal como se fez em 2005, face a uma nova realidade que o país (e o mundo) atravessa, resultante das alterações climáticas.
É, também, importante ter presente que, se em 2017 o país não tivesse sido alvo de fenómenos extremos, nomeadamente o “downburst” em junho e o furacão “Ophelia” em outubro, dificilmente teríamos vítimas em qualquer daqueles incêndios. Importa, também, haver a consciência de que, cada vez mais, vamos continuar a ser alvo destes fenómenos extremos, com as consequências a que já todos assistimos.
O que se fez, objetivamente, durante estes cinco anos para evitar tragédias semelhantes? Estou convicto de que os portugueses têm a resposta ao olhar objetivamente para o que se passou na Serra da Estrela e nos restantes incêndios florestais que ocorreram recentemente no nosso país, não obstante do esforço e abnegação dos nossos Bombeiros, face a esta nova realidade dos incêndios.
Foi recentemente anunciado pelo Presidente do Conselho Diretivo da Agência para a Gestão Integrada de Fogos Rurais (AGIF) que a investigação dos Grandes Incêndios que ocorreram este ano vão ser avaliados pela Comissão Nacional de Gestão Integrada de Fogos Rurais. A pergunta que eu coloco aos portugueses é se não deverá a AGIF, também ela, ser avaliada pelo que fez (ou não) ao longo destes 5 anos, e que nos levou a este estado?
Importa relembrar que:
– A AGIF, I. P., tem por missão o planeamento e a coordenação estratégica e avaliação do Sistema de Gestão Integrada de Fogos Rurais (SGIFR), através da integração de políticas públicas com efeitos na acumulação de combustível vegetal, no comportamento da população e na atividade dos agentes do SGIFR, do planeamento, do controlo e da avaliação do sistema, incluindo a gestão do conhecimento, de promoção da especialização e profissionalização dos agentes do SGIFR, da avaliação de operações e da intervenção qualificada em eventos de elevado risco, com o objetivo de contribuir para aumentar o nível de proteção das pessoas e bens e de resiliência do território face a incêndios rurais e diminuindo o seu impacto nos ecossistemas e no desenvolvimento económico e social do País.
– A AGIF foi criada por proposta da Comissão Técnica Independente (CTI), no relatório referente aos Incêndios Florestais de junho de 2017, de Pedrógão Grande, e integra elementos dessa mesma Comissão.
– É o Presidente do Conselho Diretivo da AGIF, I. P. que preside à comissão nacional de gestão integrada de fogos rurais.
– Os Grandes Incêndios de Pedrógão Grande de 2017 e os Grandes Incêndios de 2022 têm de ser vistos não apenas como operações de Combate (a Incêndios), mas antes como operações de Proteção Civil. Relembro que, em todos estes Grandes Incêndios, foram ativados os Planos Municipais de Emergência de Proteção Civil (PMEPC), porque é de uma Operação de Proteção Civil que se trata.
– O Ministro da Administração Interna (MAI), dispõe de uma estrutura que depende dele, a Comissão Nacional de Proteção Civil (CNPC), onde têm assento as entidades máximas das estruturas que participam no Sistema de Proteção Civil em Portugal. Foi esta Comissão que, em 11 de maio de 2022, aprovou a Diretiva Operacional Nacional que estabelece o Dispositivo Especial de Combate a Incêndios Rurais (DECIR) para o ano de 2022, conforme proposta da Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil (ANEPC).
– É a esta comissão nacional que deve competir a constituição de uma equipa multidisciplinar, através da nomeação de um representante de cada uma dessas estruturas, que, na dependência do MAI, possa fazer um trabalho sério e isento.
Portugal e os portugueses não podem perder uma segunda oportunidade de corrigir aquilo que devia ter sido feito em 2017, pois a primeira oportunidade, como todos tivemos a possibilidade de assistir, cinco anos depois, ao vivo nas TV, já foi gasta.
Muito mais há a dizer sobre Pedrógão Grande, mas este é o momento de ajudar a corrigir um rumo que começou mal em 2017. O ano de 2017 surpreendeu o país, porque não tínhamos um dispositivo preparado para esta nova realidade dos incêndios florestais que as alterações climáticas nos trouxeram, mas não podemos desperdiçar outra oportunidade, porque Portugal não pode ter outro desastre depois de estarmos todos avisados.