“Vou falar-vos de um curioso personagem, Jeremias, o fora-da-lei”— começa assim uma das canções emblemáticas do Jorge Palma. Foi uma surpresa quando comecei a ouvi-lo seriamente, no final dos anos noventa. E se era verdade que chegava tarde ao cantor, que já cá andava há décadas e naquela altura pouco mais fazia do que dar concertos alcoolizados para nichos de universitários divertidos com a extravagância, também é certo que sentia que as palavras dele eram actualíssimas, com a virtude adicional de cantadas em bom português (numa época em que a música portuguesa cantada em português era uma raridade). Nesta mesma canção, do “Jeremias, o Fora-da-Lei”, o clímax é inspirador: “Não estando disposto a esperar que a humanidade venha alguma vez a ser melhor/Jeremias escolheu o seu lugar do lado de fora”.

Escolher o nosso lugar do lado de fora é a cena. É ser corajoso, é ser livre, é escolher a bênção na eventualidade de a maioria preferir a maldição. Mas, sejamos sinceros, dificilmente é o que vemos a acontecer, por exemplo, na vida dos que dizem viver para cantar esse tipo de bem aventurança. Os nossos artistas gostam de pensar que, como o refrão do Jorge Palma, escolheram o lado de fora mas é uma treta: nos últimos dois anos, quando os primeiros rumores da pandemia chegaram, eles pressurosamente gritaram para que nos recolhêssemos aos abrigos anti-nucleares. Aí sim, saíram-lhe das bocas os seus verdadeiros refrões, em lemas como “play it safe” e, para mim, a verdadeira pérola do cagaço artístico: “a cultura é segura”. Foi para isto que se fez o 25 de Abril? Para que os nossos poetas, geralmente destacados votantes nas esquerdas da vida, acabarem como declamadores de slogans securitários?

Quando a cultura é segura provavelmente já a perdeu toda. Ter de ser eu, um pastor baptista, a mencionar o facto diz muito sobre o estado de infantilização a que temos chegado. Uma das vantagens da velha educação conservadora é que ela transmitia que a cultura exterior não era inofensiva. A casa era o lugar seguro e sair dela, aí sim, era arriscar. Logo, sair ainda era mesmo sair e ficar ainda era mesmo ficar. Os primeiros concertos que comecei a assistir eram uma aventura. Lembro-me  de ir aos Corrosão Caótica no Johnny Guitar com as botas da tropa do namorado da minha irmã, preparado para ter de me defender porque, se quisesse o colo de alguém, não abria a porta de casa. Caramba, os Trovante ao vivo em 1992 na Portela de Sintra obrigavam-nos a ter de ser espertos no meio da molhada! Quando até o Luís Represas contribui para a nossa masculinidade, está tudo dito.

No Livro do Desassossego, o Fernando Pessoa escreve: “o amor cobarde que todos temos à liberdade é o verdadeiro sinal do peso da nossa escravidão”. Uma afirmação destas ajuda-me a preservar alguma desconfiança diante de odes aos “lugares do lado de fora”. Por natureza escolhemos os outros. Quando na semana passada, líamos na Igreja o texto da entrada triunfal do Nosso Senhor em Jerusalém, recordávamos que a verdadeira adoração a Deus mete medo. Aquele acolhimento rapidamente fica doido: um burro serve de transporte para Jesus sem grande respeito pela autoridade privada; a multidão usa textos das Escrituras Sagradas para saudá-lo; todos o chamam de Rei… Enfim, é um show de exagero, exuberância, e extrapolação. Apesar de Cristo estar a entrar, as pessoas estão todas a sair de si mesmas, como indicam as palavras começadas por “ex”. Os Fariseus exigem contenção.

Até o melhor que podemos fazer, que é reconhecer Deus como Deus e comportarmo-nos de acordo, é inseguro. Adorar pressupõe que o que fazemos não funciona fundamentalmente a partir do que somos mas a partir do que Deus é. Também por isso, todos os actos de verdadeiro louvor são detestáveis a quem ainda não aderiu a ele—são manifestações da mais perigosa irracionalidade. É nessa vizinhança que se opera o êxtase, o ir lá para fora quando parece que ainda estamos cá dentro. Todo a adoração é, nesse sentido, a verdadeira escolha pelo lado de fora. O real adorador despreza a opção pela segurança, o “play it safe”, o “safe space” e todos os farisaísmos que mantêm as multidões domadas, controladas, arrecadadas em si mesmas. Não há entradas triunfais em Jerusalém quando a cultura é segura.

No Domingo de Páscoa celebramos a saída das saídas, a escolha pelo lado de fora das escolhas pelo lado de fora. O que temos para a provar? Nada. O que dominamos na ressurreição de Cristo? Coisa nenhuma. O que é seguro quando cultivamos que Deus feito homem não ficou morto? Zero. Há um túmulo vazio — é isso. Mas nisso, tudo se abriu. Quando o que era para ficar guardado se desguardou, quando o que estava lá dentro veio cá para fora, quando o defunto reviveu, aí sim, talvez renasça alguma esperança “que a humanidade venha alguma vez a ser melhor”. Canta, Jorge, canta.

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