Entre as razões erradas que podem levar alguém a tornar-se cristão, assusta-me a da beleza. Há pessoas que dizem ter encontrado Cristo porque ganharam olhos para a beleza do cristianismo. Não quero soar irresponsável (esperem, talvez soar irresponsável seja precisamente o melhor que posso fazer neste texto) mas diria que só alguém que não durará muito tempo como cristão pode encontrar beleza no cristianismo. O meu argumento é este: o que não falta à fé cristã é o feio—há feiura para dar e vender.

Estamos na Páscoa e recordamos a cena central do drama de Cristo na cruz—uma imagem feíssima, admitamos. Dois mil anos de representações podem ter suavizado o horror da crucificação de Jesus em quadros que nos impressionam mas, se formos sinceros, o espectáculo do Gólgota continua a ser medonho. Encontrar beleza num momento de implacável pena de morte no médio oriente de há dois milénios não é um critério que tenhamos como propriamente saudável.

Quem defende o cristianismo a partir da sua suposta beleza tende a encontrar nos outros insensibilidade estética. Recordo que aqui há uns anos, um dos meus escritores preferidos, o Alexandre Soares Silva (provavelmente o meu escritor preferido de língua portuguesa vivo), defendeu que zombar de Jesus na cruz só seria possível a alguém com mau gosto. Foi a única vez que me lembro de não concordar com o meu herói Alexandre. Claro que reconheço que rir de alguém a sofrer é, no mínimo, vil. Mas não estou certo de que a vileza de alguma coisa lhe impute necessariamente mau gosto.

No exemplo dado, diria que zombar de Jesus na cruz não deu uma piada má. A piada até foi boa. Seria sem dúvida uma piada passível de ser descrita com o tal elemento de crueldade. Mas não é por uma piada ser cruel que de torna uma má piada. Tendo em conta que Jesus passou três anos a fazer milagres, pedir-lhe que fizesse agora o de se livrar na cruz era uma piada algo óbvia, é certo, mas, ainda assim, bastante pertinente.

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Mateus, Marcos e Lucas mencionam a piada nos seus evangelhos mas no último o detalhe da graçola durante a crucificação de Cristo é maior. Lucas 23:35-39 diz assim: “O povo estava ali e a tudo observava. Também as autoridades zombavam e diziam: Salvou os outros; a si mesmo se salve, se é, de fato, o Cristo de Deus, o escolhido. Igualmente os soldados o escarneciam e, aproximando-se, trouxeram-lhe vinagre, dizendo: Se tu és o rei dos judeus, salva-te a ti mesmo. Também sobre ele estava esta epígrafe [em letras gregas, romanas e hebraicas]: Este é o Rei dos Judeus. Um dos malfeitores crucificados blasfemava contra ele, dizendo: Não és tu o Cristo? Salva-te a ti mesmo e a nós também.”

A piada é de tal modo forte que três dos quatro evangelistas a contam. A piada é de tal modo forte que Lucas a reporta três vezes com mais detalhe. A piada é de tal modo forte que em cena é dita por três tipos de pessoas diferentes: elite religiosa, soldados e bandidos. A piada é de tal modo forte que a Bíblia faz questão de a eternizar na minúcia da sua democratização—é uma piada competente ao ponto de irmanar ricos e pobres, fortes e fracos. Não a lemos uma vez; lemos duas e lemos três. Chego até a suspeitar que Lucas, por repisar assim a piada, pode ter tido necessidade de reprimir o seu próprio riso. Mas especulo.

O que acho importante compreender é que ninguém é cristão por estar acima da tentação de rir de uma piada destas. Ninguém é cristão por estar acima do mau gosto dos outros. Ninguém é cristão por encontrar no cristianismo a beleza que os outros, irremediavelmente desclassificados em estética, ignoram. Se alguém for cristão por causa disto, sinceramente, mais valia rir do milagroso que, depois de ter feito tanto para os outros, para si nenhum milagre fez. Pessoalmente, acho espiritualmente mais grave não achar graça a esta piada do que lhe achar.

Kierkegaard explicou melhor o que está em causa no erro de ir parar ao cristianismo por considerá-lo belo ou de bom gosto. No seu livro, “Training In Christianity”, afirmava que a forma mais perversa de se julgar cristão é abraçar o cristianismo com base nos seus “resultados gloriosos”. Assim resumidamente, no seu argumento, a melhor glória que podemos ver em Cristo não está em nenhuma beleza que ele viveu, ou em nenhuma beleza que suscita a fé que dele veio—está antes no estado de humilhação e ofensa que nos provoca. Trocando por miúdos, a real bem aventurança é o cristão ficar mal na fotografia com Jesus.

Logo, ser cristão porque o cristianismo é bom ou belo é, sim, uma bela fraude. O dinamarquês volta a ajudar-nos: “Não é Cristo, depois de se deixar nascer e fazer a sua aparição na Judeia, que se apresenta para ser examinado na história; é ele que é o Examinador, a sua vida é que é o exame.” Não são os nossos critérios de beleza (ou de outra coisa qualquer) que nos levam a Cristo. É Cristo que nos deve levar aos critérios de beleza (ou de outra coisa qualquer).

A piada da Páscoa também é o horror que ela não enxota. É bom que ninguém aceite o milagre da ressurreição de Jesus à custa de uma qualquer visão de raio-x em que, colocando de parte tudo o que é medonho, se vislumbrou, num assomo de impecável bom gosto, a beleza do cristianismo. Nesse sentido, o melhor exemplo foi o de Judas, o único apóstolo que conseguiu subtrair à sua experiência com Jesus o nojo da cruz (o patenteador da versão do cristianismo “Cristo menos vergonha”). Iria mais longe para dizer que é Iscariotes o símbolo do cristianismo que triunfa, orientado pelo sucesso, pelo lucro, e, eventualmente, pela beleza até. Neste sentido, a piada da Páscoa, numa reviravolta dos nossos critérios estéticos, não é necessariamente ficarmos cheios de beleza, é a sepultura ficar vazia. A piada da Páscoa não é o bem que nos é adicionado e que os outros podem reconhecer; é a vida nova que só chega pelo escândalo da subtracção—é muito provável que a maioria a ache de mau gosto.