Paul Krugman, um dos laureados com a medalha do Banco da Suécia para a Economia e colunista do “The New York Times”, escreveu em 2015 um artigo mostrando uma dependência óbvia, pelo menos do ponto de vista gráfico, entre o nível das taxas de juros do banco central dos EUA e os novos projetos de construção de casas. Isto para provar o ponto de que os economistas sabem o que fazem quando usam a taxa de juro como um fator de influência da economia.
Sendo um medalhado e de opiniões controversas, isto para ser meigo, Krugman está muito mais exposto que os demais ao escrutínio dos leitores. O que aconteceu foi que a pessoa a quem Krugman estava a responder nesse artigo, James Montier, analista de um banco de investimento e autor de livros de “Finanças Comportamentais”, seja lá o que isso for, descobriu que Krugman tinha truncado os dados que apresentava para provar o seu ponto de vista. No gráfico que o famoso economista mostrava faltavam-lhe os dados posteriores a 2000 e anteriores a 1970 (cerca de 40% dos dados que lhe tinham sido originalmente disponibilizados pelo site de onde os tinha retirado) que, se incluídos, mostravam exatamente o contrário daquilo que tentava provar.
Sendo um artigo de jornal, a coisa não tem a importância de um artigo científico. Mas a metodologia apresentada era a metodologia da disciplina na qual o senhor é professor, medalhado, famoso, etc. e não poderia, digo eu, ter falhado desta forma quase fraudulenta (assim seria classificado se o artigo fosse de natureza científica). Mas estava Krugman errado na “física”, isto é, no mecanismo fundamental que os dados deviam mostrar? Bem, ele justificou-se exatamente por aí, que truncou os dados porque os períodos em causa não interessavam no ponto que queria provar, o que foi encarado como uma emenda pior que o soneto. Mas Krugman tinha razão, a Economia é que não.
Imaginem que o nosso problema é entendermos os movimentos dos astros, que seria possível chegarmos aqui com todo o desenvolvimento tecnológico que tivemos, mas só agora, e por acaso, resolvemos olhar para cima. Várias dezenas de Terabytes por segundo, durante as 24 horas por dia, nos 365 dias por ano vão-nos informar daquilo que será relativamente óbvio após a chegada dos primeiros dados: A Terra é o centro do universo e tudo se move em seu redor.
Claro que há alguns dados que parecem negar esta evidência esmagadora. Um vislumbre de um planeta próximo, Vénus, obtido apenas com tecnologia desenvolvida a partir do início do sec. XVII, mostra que o planeta tem fases, tal como a Lua, e aparece com tamanhos diferentes à nossa frente. No fundo, é apenas aquilo que os estatísticos chamam de ‘outlier’. O que significam, afinal, algumas imagens de um planetazito no meio de todas as imagens, de todo o firmamento? Há ali um erro qualquer e o melhor é mesmo deitar fora aquelas imagens que não fazem sentido. Ignoremos, então, Vénus, e voltemos ao nosso bem-sucedido modelo do universo que tão bons resultados dá, tirando aqueles pontos espúrios que não interessam porque se afastam tanto da esmagadora maioria dos dados.
Neste caso, diria o leitor que estou a alterar substancialmente a verdade? Os Doutores das Duas Leis que acusaram e julgaram Galileu, no tempo em que a igreja lutava mais contra a ciência que contra o sexo, adorariam viver nos dias de hoje porque provariam de forma “matemática” que os argumentos de Galileu, baseados numa peça teórica desenvolvida por Nicolau Copérnico, eram um absurdo. Afinal, as fases de Vénus eram a base da defesa do Mestre. Talvez até o próprio Galileu se tivesse poupado às agruras de um julgamento do Santo Ofício quando fosse colocar as suas observações numa fabulosa ferramenta estatística e esta lhe dissesse para estar calado.
Mas algo que se sabia no séc. XVII, e que nesta era dos dados parece fora de moda, é que a quantidade de dados que nos chega não determina em nada a verdade daquilo que procuramos. Ao contrário da política, na ciência não interessa a quantidade de vezes que mentimos para que a verdade aconteça. Por vezes basta um vislumbre de algo para negar tudo aquilo que acreditámos, e desprezar os detalhes significa estarmos a pedir para ser enganados ou estarmos simplesmente a alimentar crendices. Há sempre uma razão, uma causa, para a produção de dados e essa causa eu gosto de chamar de ‘a física do problema’.
Para dar enfâse aos malefícios do empirismo, não precisamos de algo tão poético e relevante como as descobertas de Galileu. Podemos agora ir reduzindo a sofisticação do problema e começar a encarar a verdade como aquilo que nos é oferecido pelo fluxo de informação. Existem vários exemplos famosos, como comer comida orgânica provoca o autismo, como o fluxo de limões do México para o EUA reduz as mortes nas autoestradas e, a minha favorita, como o tamanho do pénis aumenta com a pobreza do país onde se vive (aposto que já tenho vários leitores a anuir…). Tudo, concordarão comigo (acho), completamente absurdo. Esta última até me faz pensar nas unidades em que se exprime a constante de proporcionalidade que será, imagino, milhões de dólares por centímetro de pénis.
Mas repare-se que é vulgaríssimo, particularmente em trabalhos de Economia, aparecerem argumentos sobre a quantidade dos dados ou a dimensão de uma série temporal como critérios de qualidade de estudos ou de validação de conclusões, muitas vezes misturando grandezas de ‘física’ obviamente diversas. Lembro-me de há uns anos ouvir um conhecido presidente de uma conhecida escola de Economia da capital a misturar a série da taxa de juro da dívida pública e a série do crescimento do PIB, quando a primeira é uma primeira derivada no tempo do passivo do Estado e a segunda uma segunda derivada no tempo do ativo de um país. Em palavras mais simples, o juro mede-se em euros/ano (ou percentagem por ano) e a variação do PIB em euros/ano/ano (ou percentagem por ano, por ano), apesar de popularmente as pessoas se referirem a ambas em termos percentuais. Ora a primeira indicação para um qualquer cientista de que alguma coisa está profundamente errada é quando as unidades não batem certo. Ainda que o âmbito fosse o mesmo, a comparabilidade de ambas as grandezas não melhoraria nada. É mesmo alhos por hora contra bugalhos por hora, apesar de quando misturado em metalinguagem económica ninguém dê por isso, porque soa a “coisa económica para ali” e “coisa económica para acolá”. Este conhecido economista até poderia juntar as séries de dados desde o Pliocénico Superior até que o Sol absorva o nosso planeta, que as conclusões que tirasse seriam, naturalmente, estapafúrdias.
É que há uma razão pela qual não precisamos de deixar cair 3000 pontes para saber qual é a segura, ou 2000 aviões para saber quais voam. Essa razão chama-se “lógica”. Sabemos deduzir que um avião de 560 toneladas voa perfeitamente com base em experiências de mecânica de fluidos feitas em mesas de 5 kg. É por isso que aprendemos Matemática, desta com letra grande, para que possamos trabalhar a lógica e estender o nosso conhecimento muito para lá daquilo que os nossos olhos nos dizem. Por isso fazemos a tal experiência na mesa e calculamos como o avião deve ser feito. A experiência empírica vem quando olhamos para os dados que o avião, construído e a voar, produz. Isto é, quanto temos consciência da física que está a produzir aqueles dados. Einstein passou uma década a desenvolver a Teoria da Relatividade Geral até 1915 e a experiência empírica só foi possível, com rigor suficiente, em 1954. E se não se fosse à procura da experiência, nunca tal teria sido descoberto nos dados que existiam. O mesmo se pode dizer relativamente ao bosão de Higgs, cuja descoberta lógica aconteceu em 1964 quando a verificação empírica só ocorreu em 2013, com o impacto que se conhece pelos jornais fora.
Voltando a Krugman, o nível das taxas de juro não influencia a construção de novas casas? Claro que influencia. O preço do financiamento mais baixo vai fazer a casa mais barata e vai haver mais gente a querer uma. E o reverso também é válido, se vou pagar mais há menos gente a querer. É a lógica dos primeiros princípios da Economia que nos diz isso. Não preciso de ter todos os dados a demonstrá-lo porque a física do problema do financiamento é essa, mostrada em experiências de âmbito mais controlado e restrito. Mas a física da construção da casa não depende apenas do financiamento, mas de mais uma miríade de outros fatores. Tal como a taxa de juro não influencia só a construção de casas, mas também outra miríade de coisas, umas boas, outras más. Da mesma forma que os dados que Krugman escolheu para demonstrar a sua tese não parecem corroborá-la, juntar todos os dados não irá negá-la porque não há experiência controlada que possa isolar a medida das duas variáveis. Tal como no exemplo das fases de Vénus, não há mérito intrínseco nenhum em ter muitos dados se não sabemos a física que os produziu. Ou seja, Krugman até estava correto na física, mas tratou o assunto com os pés quando resolveu usar os dados de uma experiência não controlada e com isso traiu a ciência. Devia ter simplesmente feito uso dos fundamentais da matéria que leciona e ter sido honesto porque a ignorância combate-se com conhecimento, não com mais ignorância.
E esta é uma das maiores pragas do mundo de hoje, porque qualquer ignorante pode lançar uma dúvida com base no empirismo. O aquecimento global é posto em causa por causa de um dia em que neva no deserto do Sahara. Pouco interessa que os milénios de geofísica, concentrados nos cérebros dos milhares de cientistas que viveram uma vida a estudar o fenómeno, tenham chegado à conclusão, irrefutável pela lógica, que existe um aquecimento planetário, provocado pela industrialização, que está a alterar substancialmente o clima terrestre. Está a nevar no Sahara? É porque está a arrefecer, qualquer dona de casa percebe isso. Bem podem meter os génios da Geofísica todos no lixo, porque a Dona Felismina do 4º esquerdo está a ver nas notícias que está a nevar no deserto. E já agora, podem também meter os outros todos que dizem que não se devem armar professores ou não se deve dar um ordenado a todos sem trabalhar…
(As opiniões expressas neste artigo são pessoais e vinculam apenas e somente o seu autor)
PhD em Física, Co-Fundador da Closer, Vice-Presidente da Data Science Portuguese Association