Nem precisaram de o ouvir. Afinal, os autarcas zangados do PS levantaram-se e saíram quando o professor Cavaco Silva ia começar a falar. Não esperaram pelos reparos ao governo. Adivinharam-nos? Ou só a presença do antigo presidente da república, independentemente do que diga, basta para melindrar a oligarquia socialista? Esta curiosa fobia pôs vários comentadores a especular sobre as suas razões. Ninguém se esqueceu das mais óbvias. Cavaco Silva venceu três eleições legislativas e duas eleições presidenciais. Foi, enquanto presidente, um dos poucos travões que o Partido Socialista encontrou entre 2006 e 2011, no tempo de José Sócrates, para o seu projecto de domínio do Estado, da economia e da comunicação social. Não são boas recordações para os socialistas.

Acima de tudo, Cavaco Silva foi o chefe do governo que, nos quase 50 anos deste regime, identificamos com a época de maior prosperidade e mais animadas expectativas. Pode parecer inacreditável, mas chegámos a ser optimistas entre 1985 e 1995. A economia cresceu como só tinha crescido na década de 1960. O país mudou e convergiu com a UE. Durante uns anos, todas as aspirações pareceram possíveis. Os preços das casas também subiram então: ninguém se queixou, porque o rendimento e o crédito dos portugueses subiram mais. Sim, nada disto é agradável para os dirigentes socialistas que nos governam desde 1995. O tempo deles é o de uma economia que estagnou, do mais longo período de divergência da Europa ocidental desde a II Guerra Mundial, e de expectativas que diminuíram, até nos convencermos de que melhor era impossível. E no entanto, eis o cavaquismo a lembrar que a história já foi diferente, e que por isso a história destes últimos 28 anos poderia também ter sido diferente.

Para se defender, a oligarquia socialista invoca as condições favoráveis do fim da década de 1980: o país entrara na CEE, chegavam os fundos europeus. Não é uma boa defesa. Porque nos recorda que no tempo dos governos socialistas as condições foram frequentemente ainda mais propícias. Há cerca de vinte anos, tínhamos adoptado a moeda única, os juros baixavam, e a economia mundial crescia. As primeiras décadas deste século, apesar da crise de 2008 ou da epidemia de 2020, deveriam ter sido muito diferentes para Portugal, como foram para outros países. O leste europeu, saído da miséria do comunismo, convergiu com a UE. Portugal divergiu. No entanto, tínhamos as infra-estruturas que nos faltavam em 1985, a população mais qualificada de sempre, e os fundos europeus atingiriam picos superiores ao de 1992. Não tivemos outro cavaquismo porque os socialistas no poder impuseram aos portugueses, por ideologia e expediente, os custos de um Estado cada vez mais endividado, intrusivo e limitador. Por isso, nem os milhões do PRR acendem esperanças.

Mas este cavaquismo que não houve deve lembrar-nos também do cavaquismo que poderia não ter havido. A primeira “geringonça” não foi a de 2015. Foi a de 1987, quando o Partido Socialista se propôs substituir o governo de Cavaco Silva, então em minoria, por uma maioria com o PCP e o PRD. O presidente Mário Soares podia dissolver o parlamento, e preferiu essa opção. Como teria sido a história se em 1987, tal como em 2015, a geringonça tivesse prevalecido? Não teríamos tido a revisão constitucional de 1989 e a abertura da economia, e talvez a opressão fiscal tivesse começado mais cedo. Os anos de 1987-1995, mesmo com todos os fundos europeus, teriam sido tão medíocres como foram os anos de 2015-2023. Em 1987, tivemos sorte. Em 2015, não. A história dos países faz-se nessas encruzilhadas.

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