O facto de um gestor de uma Universidade se sentir tão à vontade para dizer abertamente, num evento público, que sabe tudo sobre os professores, utilizando os estudantes como informadores, significa que sente na cultura do Ensino Superior e na cultura da gestão pública e na cultura portuguesa a aceitação para o seu discurso. Ora, tal quer dizer que o comportamento do reitor da UTAD não é uma excepção. Muito pelo contrário, é mesmo provável que seja um reitor exemplar. A aceitação ou mesmo normalização de tais atitudes e comportamentos faz-se pela não demarcação do Ministério da Educação, Ciência e Inovação; dos demais reitores; do Conselho de Reitores; do Conselho Geral da UTAD! O reitor da UTAD pelas suas palavras possibilita-nos perceber um tipo ideal sociológico: ‘o reitor exemplar’. E é nessa perspectiva que poderemos olhar melhor o que afinal se passa em várias instituições de Ensino Superior em Portugal.

De facto, ‘o reitor exemplar’ (ou dependendo da autonomia, o presidente da faculdade ou Instituto) tem comportamentos e atitudes que são o resultado de um sistema czarista, de poder de imperium consignado por um RJIES (Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior) que institui um sistema unipessoal de gestão em que uma pessoa consegue dirigir de forma discricionária uma instituição (Escola, Faculdade, Instituto ou Universidade, dependendo do caso), esvaziando (como tenho aliás referido noutros textos) os órgãos colegiais, como desde logo o próprio Conselho Geral ou o Conselho de Escola, os quais deveriam escrutinar respectivamente os comportamentos do reitor ou do presidente do Instituto ou Faculdade. Mas os demais órgãos colegiais são também apagados ou neutralizados em função do RJIES em vigor, como sejam o Conselho Científico e o Conselho Pedagógico. O sistema tal como está possibilita, ainda, com facilidade a relação/contracto entre dois personagens: por vezes um ‘narcisista grandioso’ e um ‘narcisista vulnerável’ que vão alternando nos lugares em função da limitação de mandatos, qual sistema Medvedev-Putin para a manutenção e reprodução do poder e seus vícios.

É neste sistema que ‘entra o papel do estudante’ (para usar as palavras do Reitor da UTAD) que é fundamental. Eles são os vigilantes dos professores em várias instituições. É normal pode acabar por se dizer! Para além dos recepcionistas e dos seguranças já agora. Os professores são (em alguns casos) ‘o elemento mais fraco’. E os professores são definidos como indivíduos que ‘faltam às aulas’, ‘fazem batota com as aulas’, ‘não põem lá os pés’… É de perguntarmo-nos se haverá de todo professores excelentes, que ensinam de forma verdadeira, que fazem ciência efectivamente (que sabem que 100% é o universo e não uma amostra) e que são ótimos profissionais. Em gestão podemos seguir Rousseau ou Hobbes e considerar que as pessoas são por princípio boas ou por princípio más e, claro, como diz Bourdieu a classificação classifica antes de mais os classificadores. Os estudantes percebem bem quando o ‘Chefe’ ou o ‘Patrão’ quer que se diga mal e que se aponte o dedo. E se se analisar a correlação entre ‘núcleos de estudantes’ e ‘doutores’ das praxes perceberemos mais claramente como algumas instituições de ensino superior se estão a transformar em máquinas de produção de fascistas.

Este sistema não acaba aqui: nem por sombras. Em função de todo este quadro, a avaliação de desempenho dos professores do ensino superior e os concursos para professores do ensino superior estão viciados. São, de facto, uma falsidade em que se podem analisar processos de nepotismo amiguista, de conluio e corrupção. Podem achar que exagero, mas de todo.

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O nepotismo amiguista funciona pela endogamia e por se estabelecerem laços de décadas em que se cruzam relações familiares, ou de comum origem regional, formação, clique partidária, etc.

Quanto ao conluio é óbvio em muitos júris de concursos: “ajudei-te a ti a atingir o que querias na tua instituição agora ajudas-me a mim”.

A corrupção é o resultado de tudo isto: uma instituição pública de gestão unipessoal sem escrutínio é, por si só, uma porta aberta à corrupção enquanto ‘utilização de um poder público para ganhos privados’.

A partir do momento em que se cria um sistema de poder absoluto, a lógica da bipolaridade (ou está connosco ou contra nós) instala-se. As pessoas deixam de ter qualquer liberdade e, se querem entrar, sobreviver, manter-se ou ter a possibilidade de subir na carreira têm de escolher de que lado estão. A fidelidade ao ‘patrão’ é o primeiro, senão o único critério! E ‘patrão’ parece ser a palavra correcta (há pouco tempo usada por um Secretário de Estado para referir, também num evento público, o presidente do Instituto onde dá aulas!). Isto porque as Universidades, ou pelos menos algumas instituições de forma clara, são lugares para os políticos terem um bengaleiro nos interstícios da sua carreira e, porventura, um lugar mais fixo quando atingem o seu nível de incompetência ou obsolescência.

Ora a lógica político-partidária feita de muito pôr-se a jeito e de falar à mesma voz de um qualquer chefe (tristes partidos democratas e plurais!) não é exactamente a mesma da lógica da aprendizagem científica e da própria produção de ciência, que implica antes uma discussão aberta em contraposição, em função de análises sérias e legitimadas por provas. Quando as instituições de educação e ciência seguem o paradigma do político e não do professor e cientista, estamos já numa máquina de produção de fiéis e não numa universidade. Neste sistema todos aqueles que ousarem pensar pela sua própria cabeça têm de pagar o preço de perderem os seus direitos de ensinar e de investigar de forma livre. Até uma mera ida a um congresso está dependente do ‘patrão’ máximo. Estão condenados a uma ‘vida nua’ (H. Arendt), ou seja, são ‘suicidados’ (A. Artaud) pela instituição. Nesse quadro não temos ‘universidades’ enquanto lugares da pluralidade em tradução como ecumene que ambiciona um ‘universalismo de chegada’; nem temos ‘faculdades’ no sentido de ‘capacidade’, ‘poder de efectuar’, ‘autoridade de decidir e resolver’. Em vez de faculdades temos antes ‘abstenção’, ‘coibição’, ‘incapacidade’; em vez de universidade temos antes instituições privatísticas, lugares de pensamento único, esclerosado, retrógrado e, repito, fascista.

Em função deste sistema, muitos dos que sobem na carreira não é pelo mérito, mas especificamente pela fidelidade a uma pessoa, numa lógica tipicamente de vassalagem feudal e, já agora, de construção de personalidades de ‘agentes’ (só cumpro ordens) ou personalidades autoritárias (Adorno). Não tenho a certeza de que estejamos todos cientes do que isto significa! Os concursos nos últimos anos foram internos, o que diz tudo. Agora têm outra vez o epíteto de internacionais, mas são muitas vezes (uma auditoria seria muito bem-vinda) terrivelmente locais, com fotografia clara para uma pessoa, o que não é possível segundo o ECDU. Estou em crer, não sendo jurista, que tais concursos põem de facto em causa direitos constitucionais de tratamento igual; que põem em causa direitos de carreira destes profissionais e põem em causa regras do direito administrativo. O artigo publicado este 20 de outubro de 2024 sobre a luta de 14 anos em tribunais, de Maria Helena Rodrigues no Diário de Notícias, por concursos mais justos na Universidade de Coimbra é disso um bom exemplo. A questão destes concursos é a da (falta de) veracidade da avaliação do mérito científico nas universidades. E tal leva a que, simplesmente, muitos que não têm lugar nas universidades portuguesas deviam ter, e muitos dos que permanecem como professores não deveriam de facto estar lá.  Mas, para além disso, toda esta situação é um completo impedimento à mobilidade e, portanto, a uma verdadeira possibilidade de realização na carreira, à possibilidade de inovação, à conciliação carreira-família e à possibilidade de melhores instituições. Aliás, a mobilidade é fundamental em termos de mais internacionalização, mais diversidade, mais escala e excelência na investigação, mais impacto social e mais!

O Ministério intitula-se da Educação, Ciência e Inovação. Mas como é possível assegurar uma educação liberal e democrática em instituições de gestão iliberal de tipo unipessoal? E como é possível fazer ciência em instituições em que a liberdade de investigar e o mérito científico não são o critério? E como falar de inovação quando predomina a perseguição e a subordinação?

Num país normal não devia haver lugar para reitores, presidentes de faculdades ou institutos ou, já agora, quaisquer outros gestores que utilizem o medo, o assédio moral, os informadores/bufos, a perseguição e a subordinação completa como forma de gestão. Num país normal não deveria haver lugar para este ‘reitor exemplar’.