Miguel é, acima de tudo, um gastrónomo. Somos amigos há muito tempo. É um tipo afável e comunicativo, alto e forte, mas atlético, e tem sempre o ar de quem está de passagem: um viajante. Quando nos encontramos, traz sempre uma mochila no ombro direito e creio que terá sempre o necessário para passar duas ou três noites. Já foi professor da universidade, mas libertou-se e agora tem um restaurante ‘da terra ao prato’ que abre de quinta a domingo com marcações. Ainda que nunca me tenha dito, creio que anda atrás de uma Estrela Verde Michelin. Convidei-o para vir falar a uma aula minha. O relato que faço de seguida é o retrato resumido, mas o mais fiel possível da sessão que deu.

“- Olá a todos. A estória que tenho para vos contar hoje pode chamar-se ‘O descascar da cebola’ ou também ‘A cebola portuguesa’. Pegou na mochila cinzenta que normalmente o acompanha e tirou de lá uma cebola, para surpresa minha.

– Então digam-me lá o que é isto? – disse com ar galhofeiro, erguendo no ar uma cebola graúda pelo cabo com a sua mão direita.

– É uma cebola! – disseram uns enfaticamente – Uma cebola! – disseram outros quase em tom irónico. Desencontrados todos nas suas respostas.

– É mais do que isso: é uma cebola portuguesa! Uma cebola portuguesa! – disse Miguel enfaticamente! Um produto único! Só existe em Portugal!

Eu que estava a observar percebia pela cara de alguns estudantes que estavam a achar que a aula não seguia para lado nenhum! Que estavam a achar que era uma brincadeira certamente! Ouvi até comentários “Que é isto?!” e “Uma cebola é uma cebola!”.

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– Vamos lá dizer todos em uníssono: Isto é uma… Cebola Portuguesa! Vá digam comigo: isto é uma? …Cebola Portuguesa! Isto é uma… – Cebola Portuguesa (repetiram alguns).

– Há alguns que não disseram! Não acreditam? Discordam? Alguém quer contestar?

Ninguém disse nada!

– Ok. O que aprendemos com tudo isto? – deixou o silêncio pairar no ar a ver se havia respostas, mas nada. – Não aprendemos nada! Apenas acabámos de aceitar uma subordinação a uma convenção e a subordinação à autoridade. Que isto é uma cebola é mera convenção. Que seja uma cebola portuguesa fui eu que impus com a minha autoridade sobre a situação e vocês aceitaram. O meu assédio a quem nada disse reduziu qualquer resistência pública a uma mera reserva mental. Esse é o grau zero do pensamento: o pensamento único. E ainda assim, muitas vezes, contentamo-nos com tal tipo de pensamento. E ficamos escravos dele.

-Vamos então tentar outro tipo de pensamento. Porque é que isto é uma cebola? E porque é que não é outra coisa qualquer: uma batata; um tomate; um …sei lá! Vamos dividir-nos em dois grupos. Deste lado direito vamos pensar porque é que uma cebola é uma cebola. Deste outro lado, vamos pensar porque é que uma cebola não é outra qualquer coisa. Ok? Um quarto de hora. Vamos lá! Escrevam!

Passados 15 minutos de burburinhos, Miguel regressa à fala: – Vamos lá então! Deste lado. Porque é que uma cebola não é uma batata ou um tomate?

– Porque não!  Não é um fruto – diz um! – Porque é uma convenção! Não foi o que disse!? Podíamos ter-lhe chamado tomate! – Diz outro. – Porque é um bolbo. Pode-se comer cru como um fruto, mas não é um fruto! – diz ainda um terceiro.

– Ok. Muito bem! E deste lado? Porque é que uma cebola é uma cebola? – Porque tem camadas, como disse o Shrek! – diz um. – E porque faz chorar quando se descasca! – Reconhece-se também pelo cheiro! – diz um terceiro.

– Ok. Juntamos uma série de provas e consideramos que existe uma probabilidade de ser uma cebola. Os sentidos, sejam a visão, o toque, o cheiro, o sabor, aumentam a probabilidade de aceitarmos a ‘coisa’ como aquilo que nós, por convenção, chamámos cebola.  E, o nosso cérebro, de forma instantânea (não tão instantânea para quem sofra de Alzheimer, por exemplo) utiliza a lógica da falsificabilidade para ir dizendo que não é um tomate, uma batata ou outra qualquer coisa. Já temos aí alguma lógica científica. E, no entanto, o que acrescentámos ao nosso conhecimento? Nada! Uma cebola é uma cebola e uma cebola não é uma batata ou um tomate!

– E, atenção, eu apresentei-vos uma cebola! Se vos tivesse apresentado um cebolo poderiam ter dificuldade em dizer que era uma cebola…e, de facto, seria?! Era ainda um cebolo! E aqui está outro ponto interessante: quando é que um cebolo se torna uma cebola? Quais as diferenças entre eles? E quais as diferenças ainda em relação a um cebolinho? A lógica que aprendemos agora de pouco nos serve para tal.

– Podemos juntar estas perguntas de investigação, reunirmo-nos e chegar a um consenso de turma sobre os elementos que definem uma cebola e os distinguem de outros produtos da terra. Podemos ainda chegar a um consenso sobre o que distingue uma cebola de um cebolinho ou de um cebolo. Atingimos um modelo ou um paradigma da cebola! E depois!? Ficámos a entender algo sobre a cebola? Provavelmente não! Quase nada ou muito pouco! O que tal pensamento nos diria sobre as diferenças entre cebola branca, roxa, amarela, chalota ou outras? Nada! Ou seja, toda a biodiversidade da cebola poderia desaparecer se só usássemos a lógica científica tradicional para chegarmos a um modelo da cebola.

– Agora utilizemos antes uma outra lógica. Contra o método ou intuitiva e baseada nas experiências adquiridas e na liberdade da imaginação. Ou seja, na capabilidade de cada um. Dê-me a sua mão. – disse Miguel a uma das alunas – Pegue na cebola.

Miguel colocou a cebola na palma da mão da aluna.

– Agora diga-nos o que poderia fazer com esta cebola na cozinha?

– Fazer como? Cozinhar?

– Sim! O que poderia fazer?

– …por exemplo um estrugido de cebola e azeite e alho? e… podia acrescentar tomate.

– Boa! Logo a base de toda a cozinha mediterrânica. Vamos agora ter outro olhar. Por favor outra mão! – Miguel tirou a cebola da palma da mão da aluna e colocou-a na de um aluno próximo. – Então, o que lhe diz esta cebola das suas possibilidades? Suas, da cebola e suas, de si próprio? O que poderia fazer com ela, com toda a liberdade da sua imaginação?

– Uma omelete com cebola em juliana, salsinha e queijo! – disse o estudante.

– Ora nem mais! Boa! – Miguel pegou outra vez na cebola pelo cabo e disse: – Agora imaginem todos que têm a cebola na vossa mão e digam, cada um de vós o que faria? Quais as possibilidades de futuro que definem esta cebola?

– As vozes surgiram desencontradas e sobrepostas:

– Um bacalhau à Brás…ou um alho à Brás! – Um bacalhau à Narcisa com as cebolas em rodelas a juntarem-se às batatas fritas! – Uma sopa de cebola! – Um molho verde para encimar um carapauzinho grelhado! – Uma tortilha!

– Isto já me está a dar fome! – Que fome! – Começaram a dizer alguns.

– Estão a ver! – Disse Miguel. – De repente o nosso conhecimento multiplicou-se e explodiu. Estamos todos ‘subalimentados do sonho’. Com liberdade e imaginação, todos temos conhecimento para partilhar sobre a cebola. Conhecimento que se torna ‘poesia para comer’! E é um conhecimento que não é só meu, nem só de cada um de vós. É criativo e partilhável. E também não é só cerebral. Não é uma probabilidade ou a solidariedade fraca de um modelo. Não! É antes um conjunto de possibilidades! E convoca todos os nossos sentidos. E até o estômago! E o cérebro! Quando invocamos o futuro e a imaginação e os podemos partilhar em liberdade é que se dá a verdadeira explosão de conhecimento. É aí que podemos ter as boas definições do mundo e das coisas. E é aí que podemos começar a trabalhar em conjunto. E a apreciar o conhecimento como vida verdadeira!”