Quando há dias fiz um funeral, tive a oportunidade de admitir que acreditar na ressurreição continua a parecer ridículo. E escrevo “continua” porque já há dois mil anos assim era. Quando Jesus pregava a ressurreição soava tão ridículo como soa hoje. Até os religiosos mais sofisticados daquele tempo riam da ressurreição. Alguns deles eram conhecidos por Saduceus. Os Saduceus eram o clero mais estudado, mais erudito, geralmente das classes privilegiadas e de tendência progressista. Os Saduceus assistiam ao fenómeno popular de Jesus com alguma condescendência. E dessa condescendência nasce um diálogo interessante com Cristo.

Não deve espantar ninguém que uma pergunta que seja feita com condescendência não esteja tão interessada assim na resposta. Nós conseguimos topar quando alguém está a ser paternalista connosco, ainda que nos faça uma pergunta. Jesus estava mais do que habituado a pessoas que o questionavam sem ter um interesse sincero no que ele tinha para responder. E assim aconteceu neste caso. Os Saduceus perguntam a Jesus com que marido uma mulher estaria casada no Céu se tivesse sido esposa sucessiva de sete irmãos. A questão era uma fraude porque esta gente, de tão instruída que era, tinha perdido qualquer fé na ressurreição. O que eles queriam era apanhar Jesus em público numa declaração que demonstrasse que era um radical sem eira nem beira.

Para responder à letra da esperteza dos Saduceus, Jesus acusa-os de ignorarem as Escrituras e ignorarem o poder de Deus. Meio na defensiva, Jesus reclama que achar que a ressurreição era ridícula acontecia sobretudo a quem não lia os textos sagrados. Como assim? Os Saduceus teriam as maiores bibliotecas sobre qualquer assunto daquele tempo… Mas se Jesus estava a acusar de ignorância a classe de gente que mais instrução acumulava, chegava uma ironia à conversa: será que os mais instruídos podem, no final de contas, revelarem-se os mais ignorantes?

Quando os Saduceus tinham feito a pergunta, trouxeram a Lei de Moisés para a conversa: “Moisés nos deixou escrito que, se morrer o irmão de alguém e deixar mulher sem filhos, seu irmão a tome como esposa e suscite descendência a seu irmão (Marcos 12:19)”. Jesus faz questão de manter Moisés na conversa: “Quanto à ressurreição dos mortos, não tendes lido no Livro de Moisés, no trecho referente à sarça, como Deus lhe falou: Eu sou o Deus de Abraão, o Deus de Isaque e o Deus de Jacó? Ora, ele não é Deus de mortos, e sim de vivos. Laborais em grande erro” (vs. 26 e 27). Ou seja, quando Deus se apresentou a Moisés, apresentou-se através do nome de pessoas que já tinham morrido naquele tempo. No entanto, Deus não é de mortos mas de vivos.

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Lógica da resposta de Cristo: apesar de Abraão, Isaque e Jacob já terem morrido quando Deus se apresenta a Moisés, a certeza da ressurreição era o que podia fazer daquelas referências mais do que apenas memórias. Moisés poderia acreditar no poder do Deus que se apresentava a ele para que o povo judeu fosse libertado do Egipto precisamente porque Deus dá vida até aos que morrem. Logo, o poder de grandes coisas acontecerem hoje, como o êxodo dos ex-escravos, firma-se no poder do futuro quando todos os mortos ressuscitarão. Se todos os que já morreram vierem a viver de novo, não há esperança, por ridícula que pareça, que não possa concretizar-se.

Jesus quer deixar claro que o Deus que ele representa, em quem supostamente os Saduceus deviam crer, não é um Deus de honras fúnebres. O que está em causa é o tal poder que passa ao lado de quem não lê a Escritura. Claro que é lógico ter a ressurreição como algo ridículo quando não se atribui um poder real a Deus. Se Deus não existir, como pode existir a ressurreição? E se até existir um Deus mas que não tem grande poder, o mesmo se aplica. Quando muito, teremos um Deus de mortos, porque todos acabaremos por morrer. Este poderá ser um Deus de memórias, de referências fúnebres mas dificilmente será o Deus da sarça ardente, o Deus que sustenta genealogias, o Deus que da família de David sacou o Messias, verdadeiro homem-divino. Mas o Deus de Jesus era este Deus de vivos.

Quem acredita na ressurreição em 2023 prolonga este ridículo que já foi atribuído a Jesus. Equivaler uma religião com dogmas de ressurreição a ignorância é passo antiquíssimo, de facto. Mas para mim o verdadeiro absurdo seria, aceitando que o Universo foi criado pelo verbo da vida, separar o poder da palavra. Estudar tantas palavras para deixar de acreditar na primeira é adquirir no privilégio da instrução o pecado da ignorância. Que trágico doutoramento.