Nos últimos anos, tenho sido bastante crítico da criação de um partido liberal. A ideia de que a captura partidária das ideias liberais seria uma forma de conseguir combater o socialismo, o tempo tem provado ser uma ilusão.
Não há um liberalismo. O liberalismo não é uma ideologia, não é uma doutrina nem tem paternidade conhecida, ou uma data de nascimento definida no tempo. Ao contrário do socialismo, filho de Marx e de Engels, nascido no século XIX, e que no seu apuramento e disputas deu lugar a outras correntes – como a social-democracia ou o trotskismo –, o liberalismo é muito mais uma tradição de pensamento, plurissecular, que cobre tanto o pensamento da Escola de Salamanca, da Escola Austríaca, ou dos neoclássicos, um liberalismo anglo-saxónico ou de raiz continental, até os liberalismos do século XX das escolas de Chicago, de Rand, ou até liberais sociais. Um liberalismo plural vive bem em diálogo com o pensamento conservador e humanista, assim como com correntes mais vanguardistas e de rutura que a cada momento fazem evoluir a sociedade em matéria de pensamento, valores e costumes. Por isso, sempre desconfiei que um partido liberal fosse viável, porque haveria sempre o risco de se tentar enjaular o liberalismo numa redução ideológica que em si mesma seria uma contradição insanável com a ideia de pluralismo. Como destaquei, aqui, já Strauss, e, antes dele, Sócrates, haviam alertado para os riscos de tribalização e sectarização quando se quer delimitar uma filosofia nos limites da ação política.
Mais, sempre considerei indesejável que um partido maioritário seguisse linhas ideológicas demasiado fechadas, e se tentasse promover uma “transformação social”, em oposição ao socialismo, na difusão de um certo tipo de liberalismo. Há nesta forma de ver um vício quase historicista e dialético, de luta de contrários, e uma lógica de vanguarda, que sempre senti profundamente iliberal. Como referi, aqui, as democracias liberais mais saudáveis são as que foram conseguindo dirimir as suas desejáveis diferenças no quadro do pluralismo e da tolerância, sendo a matriz liberal ou socialista muito mais um padrão ou uma tendência, e muito menos uma identidade marcada. É a meu ver indesejável que os partidos ditos de “poder” – ou seja, os que têm de resolver os problemas concretos das pessoas, do Estado e das empresas – sejam excessivamente dogmáticos e fechados, pois tal significa que não serão representativos da sociedade, nas suas diversas aspirações e especificidades: uma força política, ou um conjunto limitado de forças políticas, que agregue 40% das preferências do eleitorado, se o faz promovendo uma linha dogmática fechada, apresenta um risco de totalitarismo, ou de pelo menos uma certa ditadura da maioria. “Partidos de poder” demasiado homogéneos são um perigo para o pluralismo e para as democracias que genuinamente respeitam a liberdade.
O relativo sucesso da IL trouxe, como eu receava, uma balcanização do liberalismo, e a sua tribalização. Hoje, partidos como o PSD ou o PS mostram menos abertura a ideias liberais do que o faziam no passado, estando as soluções ditas liberais encapsuladas num partido que hoje representa 8 deputados na Assembleia da República. Com a agravante de que grande parte das soluções “liberais” propostas pela IL, paradoxalmente, mais não são do que farrapos de liberalismo utilizados para arremesso parlamentar e mediático, sem qualquer consistência ou viabilidade. Basta ter presente as inúmeras dislexias e atentados ao pensamento liberal que se podem ler no famoso programa da IL às ultimas eleições legislativas, que de tanto confiar na mão invisível esqueceu que até mesmo as ideias liberais precisam de um certo grau de edição e preocupação pela consistência do que se propõe como políticas públicas.
E se estes eram riscos já estavam bem identificados, desde a génese da IL, nos últimos meses começou a ficar claro para todos o que já era óbvio para alguns: um certo deslumbramento pelos resultados eleitorais iria necessariamente dar lugar às normais tensões entre fações rivais, numa luta pelo Poder.
Não sejamos ingénuos: a luta pelo Poder está presente em todos os partidos. Mesmo o PS, que governa com maioria absoluta, exibe diariamente, e em prime time, as desinteligências entre “Costistas” e “Pedronunistas”, mostrando como os maiores inimigos dos socialistas estão dentro dos limites do próprio partido. O PSD, por seu lado, nunca teve paz interna, e o CDS, o PAN, e até o irrelevante Livre ofereceram-nos, eles próprios, verdadeiras novelas venezuelanas, com enredos que competem directamente com as melhores séries da Netflix. Este tipo de disputas internas, porém, em partidos ainda em consolidação e com pouca base sociológica como a IL, podem ser fatais, e conduzir à insignificância ou extinção.
Cotrim de Figueiredo percebeu que já não tinha mão num partido balcanizado e excessivamente urbano, onde um grupo ruidoso de “deplorables” ou excluídos se preparava para bloquear em breve o funcionamento do partido. Bateu com a porta e forçou uma clarificação, que é decisiva para a IL.
Ao contrário do que muito se lê por aí, as divergências entre Rui Rocha e Carla Castro, e os que a seguem, não são de natureza ideológica. A ideologia é apenas um pretexto para justificar uma tentativa de conquista de Poder que pode ser ruinosa para a IL.
A IL recebeu, nas últimas eleições, um voto de confiança de muitos eleitores, e organizou-se à volta de um grupo parlamentar que simplesmente implodirá se Carla Castro ganhar as eleições. Não estão em causa os méritos ou deméritos dos candidatos (que os têm), mas a constatação de que nesta fase a IL não se pode dar ao luxo de prescindir de ter um líder capaz de dar continuidade e manter coesos e motivados os que nesta altura asseguram o funcionamento normal do partido. Apesar da convicção do Carlos Guimarães Pinto (que não resistindo a qualquer raio de SOL, nos veio anunciar que o liberalismo vencerá sempre, seja qual for o líder e o rumo do debate, talvez porque tal estará escrito no devir da História, mesmo que nas decisões livres os indivíduos e as indivíduas liberais optem por dar tiros nos dois pés), diria que implodir a estrutura frágil de um partido por desinteligências pessoais, travestidas de ideologia, servirá apenas para que em breve vários como eu tenham motivos seguros para escrever elogios fúnebres à IL.
Por esta vez, desejo genuinamente não vir a ter razão. Se constituir a IL já foi, em si mesmo, um erro, pior será que o partido agora morra às mãos de uma disputa fratricida e tribal. Espero, por isso, que as pessoas com capacidade eleitoral, na IL, façam escolhas serenas e lúcidas, e que daqui emerja uma IL mais aberta, mais plural, mais capaz de criar pontes com as pessoas – mais sólida na construção de soluções pensadas a partir das ideias liberais –, apta a liderar o combate àquilo que nos trava e impede de ser um país desenvolvido: estatismo, burocracia, impostos, inércia, clientelismo e corrupção. Aí veremos se há IL para ajudar a libertar o potencial de Portugal, ou se nasceu apenas para hipotecar as ideias liberais. Veremos nos próximos dois meses, se a IL é diferente, e resiste à autofagia em curso.