Portugal entra no ano de 2023 num ambiente profundamente deprimente com as páginas dos jornais recheadas de más notícias: inundações como há muito não se via, inércias dos serviços públicos, greves, escândalos sucessivos caprichosamente publicados por meios de comunicação social que em vez de informar aceitam ser caixas de ressonância e amplificação das autofagias de um partido que exerce há demasiado tempo o Poder.

No filme Voando sobre um Ninho de Cucos, Milos Forman questiona a forma como uma sociedade monolítica se impõe aos cidadãos. Sob falsos pretextos de democracia e liberdade, a normalidade só existe se não for questionada. O enredo, esse, desenrola-se num manicómio, onde vários pacientes, resignados, internados voluntariamente, procuram um ambiente protegido e confortável onde se possam sentir seguros, aceitando em troca submeter-se a tratamentos violentos e a comportamentos acríticos e mecânicos que lhes são impostos como “normais”.

No hospital psiquiátrico de Forman não há espaço para a consciência, vivendo a sociedade em cativeiro.

Com uma presidência da república capturada pelo governo e deslegitimada pela sua própria banalização, e oposições desorganizadas, assusta ver tantas pessoas resignadas à falta de alternativas visíveis a um Partido Socialista que secou a democracia em Portugal, mas também o modo como qualquer alternativa ao establishment é vista como nociva. Em muitos aspetos, o que se assiste em Portugal não está muito afastado das metáforas do filme de Forman. Quem com um mínimo de espírito crítico esteja atento ao enredo comunicacional e político tem de concluir que Portugal vive hoje aprisionado por uma ausência de consciência, onde (sendo simpáticos) a vontade legítima de atingir a normalidade leva uma larga maioria da população a ignorar a realidade e a aceitar qualquer narrativa ficcional. Nesta sociedade delirante os poucos que a questionam são rotulados de loucos (ou de qualquer outro chavão menorizante).

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Num país cada vez mais entregue a si próprio, onde a fronteira entre a salvação e o infortúnio depende dos caprichos da natureza, do berço ou das teias de relação, políticos comprometidos com toda a nossa história recente desmultiplicam-se em encenações, em narrativas de desresponsabilização onde tudo é permitido desde que se garanta que as coisas mais ou menos ficam na mesma. No teatro atual, parar é morrer. Quanto mais dramática se desenha a tragédia, mais exagerada nos é apresentada a encenação: que no atual estado de coisas seja tão difícil aspirar a uma mudança diz muito do estado de adormecimento psiquiátrico instalado.

A desgraça de hoje é rapidamente esquecida na memória coletiva e substituída pela polémica do dia, algo que é humanamente compreensível para defesa da nossa sanidade, dada a imensidão de tragédias com que diariamente somos confrontados. Nesta caminhada, os Randall McMurphy que teimem em desalinhar da normalidade imposta passam a ser alvos a abater. Digam o que disserem, as equipas de defesa do regime chefiadas pelas enfermeiras Ratched têm uma função, desconstruir as críticas, pouco importa a substância do que se diz. Há que criar rótulos, de dedo em riste, que impeçam o debate e não permitam que o povo, saindo da normalidade, perceba a farsa vigente. Quem nos governa desde há muito sabe que a sua única defesa é a inércia e o medo que uma população envelhecida, pobre e instalada tem da mudança.

A normalidade em Portugal chama-se “socialismo”. Por isso é tão difícil pôr um país a olhar e a pensar segundo um prisma um pouco mais liberal.

A rotação é saudável em democracia e seria bom para Portugal que nos próximos anos o partido socialista desse espaço a outras governações. Como temos visto nas últimas semanas, parte do esgotamento da atual solução governativa não se cinge já só a políticas públicas, mas a uma partidarização do aparelho do Estado que nem o próprio Primeiro-Ministro é capaz de escrutinar e avaliar, refém que está de (des)equilíbrios internos entre fações rivais, com consequências nocivas para a democracia e para o país.

Por estes dias o PSD reorganizou-se e apresentou um novo Conselho Estratégico onde abunda gente nova e com valor dentre os 25 coordenadores indigitados, 15 dos quais independentes, e onde não faltam mulheres (13), daquelas que não precisam de regimes de quotas para se afirmarem, mostrando que quando as coisas são bem feitas as mulheres também respondem ao apelo da política. Espera-se que estas iniciativas sejam um prenúncio de que o PSD irá resistir à tentação de esperar que o Poder lhes caia nas mãos na sequência de mais um pântano, preparando-se para ser alternativa à atual governação.

Já a IL vai a eleições, que se desejam clarificadoras não apenas na fulanização das lideranças, mas também no posicionamento do partido. Entre Rui Rocha e Carla Castro há diferenças substantivas que se espera que os militantes da IL sejam capazes de racionalizar, algo nem sempre fácil num processo eleitoral que tem uma componente afetiva muito vincada.

Na introdução à novela Anthem, de 1938, Ayn Rand explica bem como durante séculos funcionou a legitimação moral das políticas socialistas e se construiu o processo de normalização vigente. Não há proposta vazia ou ultrajante o suficiente que não possa obter aprovação respeitosa de toda uma audiência se, de alguma forma indefinida, for capaz de se enquadrar numa ideia vaga de “bem comum”. Todas as medidas são aceitáveis se o político de turno as adocicar com a expressão “social”: sejam “ganhos”; “objetivos” ou “benefícios”… se forem “sociais”, até a companhia aérea mais deficitária e falida ou o sistema público de saúde ou educação mais ineficiente poderá permanecer, pois não faltarão cidadãos moralmente derrotados, na ânsia de busca de proteção contra a necessidade de tomar uma posição, dispostos a recusar admitir para si mesmas a natureza daquilo que estão a aceitar. O grande desafio da IL é assegurar que resiste à tentação de fazer política de forma mimética, abdicando de pensar, limitando-se a substituir a palavra “social” pela palavra “liberal”. Na moção apresentada pela candidata Carla Castro é necessário dissecar cada frase para encontrar alguma substância, sendo, porém, fácil contar, em 75 páginas, 439 vezes a palavra “liberal”. Na verdade, não falta na IL quem acredite que a afirmação vazia de que são amantes da liberdade, sem dar nenhum significado concreto à palavra, é suficiente para conquistar o Poder. São muitas as pessoas que acreditam que o conteúdo das ideias não precisa ser examinado, que os princípios não têm de ser definidos e que os factos podem ser eliminados, mantendo-se os olhos fechados, bastando apelar às emoções e ao pulsar do coração. Na ânsia de ganhar “quota de mercado”, a IL tem assumido vezes demais a defesa de ideias vazias que pouco ou nenhuma relação têm com uma matriz liberal. No seu programa eleitoral, de 2022, podemos encontrar, entre (inúmeras) outras, pérolas como a defesa da “criação de um Conselho Superior das Magistraturas, que funda o Conselho Superior  da Magistratura, Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais  e o Conselho Superior do Ministério Público”, capturado pelo poder político que nomearia a maioria dos seus membros, incluindo o seu Presidente, em clara violação de um dos princípios basilares de (qualquer) liberalismo: a separação de poderes. Já não falando no deslumbramento fabiano pela tecnologia e pela concentração de informação na Administração Central, incluindo – pasme-se – a defesa da promoção da (e cita-se) “efetiva integração dos sistemas de informação da administração interna e sua plena interoperabilidade, removendo as ilhas de informação de cada Força e Serviços de Segurança e Proteção Civil que impossibilitam a sua eficiente unidade de ação” levando a que possamos ler num programa liberal a defesa de algo que deixaria Orwell em estado de alerta (e que nem o Chega algum dia se atreveu a propor). A maioria das soluções apresentadas, mesmo as que tributam num saudável pensamento liberal, resultam apenas da reciclagem de políticas públicas esgotadas, pensadas para o mundo que saiu da 2.ª guerra mundial e dos acordos de Bretton Woods. Nenhuma das propostas que refiro são de menor importância, tendo passado no crivo de um partido onde ainda há quem se orgulhe, hoje, de ter apresentado um programa eleitoral com 600 páginas em claro “copy paste” e sem qualquer edição ou validação.

Nos próximos meses veremos, por isso, se há PSD e IL a abrir a frente das soluções políticas, ou se continuaremos agoniados nesta (a)normalidade asfixiante.