Aguentem o revirar de olhos, ó gente que chamais boomers a toda a criatura nascida antes da invenção do telemóvel de ecrã táctil, metendo pelo menos três gerações e meio século no mesmo saco – vamos começar a crónica por estas palavras: sou do tempo. Assim mesmo. Estas três. Sou + do + tempo. Em que quê? Portugal se apurava para as grandes competições de futebol com a mesma regularidade com que um foguetão de Elon Musk efectivamente funciona. Falhávamos à última, íamos agarrados à calculadora, se ganhássemos o último jogo do apuramento por 7-0 e a Alemanha perdesse o deles por 15, com um golo marcado com o rabo a um minuto ímpar, ainda conseguíamos. Mas depois a Checoslováquia reduzia para 15-1 com um golo marcado com a orelha e lá se íamos nós.

Tínhamos para mostrar um Euro 84 em que chegámos às meias-finais, no tempo em que bastava passar o grupo para chegar a essa fase e em que o nosso guarda-redes Bento foi o Diogo Costa da bola corrida e nos impediu de levar 5 ou 7 da França do Platini e do Tigana. Um México 86 em que fomos do céu ao inferno mais depressa do que o Usain Bolt conseguiria dizer “say whaaaat?”, quando os jogadores bateram a Inglaterra na abertura, mas depois fizeram um motim porque queriam mais por prémio de jogo e logo fomos eliminados, ainda na primeira fase (e já não houve problema com o valor dos prémios de jogo porque já não houve mais jogos). E lá atrás, muito, muito lá atrás, um épico Mundial de 66, em que eliminámos o Brasil bicampeão mundial de Pelé e caímos nas meias, frente a uma Inglaterra que era a anfitriã e orientou a coisa bem orientada para ganhar a sua única grande competição da história (o que, da parte duns gajos que se gabam de ter inventado o desporto é, convenhamos, embarassing).

E foi aí, foi mesmo aí no momento em que abandonámos esse torneio que tanta gente dizia que deveríamos ter ganho, que se cristalizou a nossa imagem acabada: Eusébio deixando o campo a chorar, enxugando as lágrimas na camisola, confortado pela mão e rosto tristes, mas conformados do seleccionador Manuel da Luz Afonso. Era a nossa nova senhora de Fátima. O inocente caído perante a injustiça. O corpo do mártir carregando toda a dor histórica de uma nação cheia de méritos, mas tombada. E de algum modo, bastava-nos isso. O consolo oferecido por aquela certeza de que tínhamos sido injustiçados. Vítimas. De que poderíamos mesmo ter sido campeões. Se não fosse x. Se ao menos y. Os outros tinham uma imagem do capitão deles a levantar a taça; nós tínhamos a do melhor jogador do mundo a chorar copiosamente. O facto de isso nos contentar é a definição de ser português. Era a nossa taça, o nosso poster, o nosso totem, o santo aonde nos rever e a quem rezar nas horas difíceis, que, para nós, são quase todas.

Bastaria isto para respeitar infinitamente Cristiano Ronaldo.

Sim, Ronaldo foi, frequentemente, irritante ao longo da carreira. Vaidoso, narcisista, muitas vezes egoísta em campo. Sempre que falhava e se queixava da relva, das chuteiras ou do campo magnético da Lua. Sempre que dizia que não lhe interessavam os recordes e toda a gente percebia que só lhe interessavam os recordes. Quando era um milionário no Real Madrid, mas dizia que estava triste, porque o Barcelona tinha aumentado o Messi e o argentino agora ganhava mais do que ele. Quando amuou no regresso ao United e se achou acima do clube que, por acaso, é um dos maiores de sempre e aquele que lhe deu tudo. Quando foi para a Arábia, a defender uma suposta qualidade do futebol local, em vez de aceitar que está em fim de carreira e que foi ganhar dinheiro e que está tudo certo com isso.

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Mas tudo isto é absolutamente irrelevante perante a carreira alienígena do atleta. Antes de Ronaldo, a selecção tinha conseguido apurar-se para três Europeus; Ronaldo foi a seis. Antes de Ronaldo, a selecção tinha ido a três Mundiais, em dois dos quais (1986 e 2002) melhor faria não ter ido; Ronaldo foi a cinco, um dos quais (2014) melhor faria não ter ido. Com Ronaldo e durante 20 anos, Portugal apurou-se para todas as grandes competições. Estar lá tornou-se normal. Mas não era normal – como sabe qualquer gajo nascido no tempo do Pique (pesquisa, gen Z) – era absolutamente anormal. Melhor: era um sonho, como diria Torres e nós adorámos. Houve outros factores? Claro que houve – a começar por, só se apurarem 20 equipas para o Mundial no tempo do telefone de disco e, hoje em dia, haver lugar para 32, e os Europeus antes serem um clube chique com acesso restrito a oito selecções e hoje um bar aberto com espaço para o triplo. Mais toda a qualidade da nossa formação, dos treinadores, dos atletas (embora se possa discutir se Bernardo Silva, Bruno Fernandes e Pepe serão mesmo assim tão melhores do que Nené, Chalana e Humberto Coelho, por exemplo). Mas individualmente, considerado o contributo de cada factor de forma isolada, não encontrarão outro mais relevante do que Ronaldo. Porquê? Porque é um vencedor.

Isso. Não são sequer os impressionantes dons físicos do puto que veio pobre do Andorinha do Funchal que mais fizeram a diferença em 20 anos de selecção; são os dons psicológicos – aliás, os mesmo que explicam os físicos, isto é, que Ronaldo fosse um lingrinhas das fintas, quando o conhecemos, e se tivesse tornado no Rambo do Santiago Bernabéu, que batia livres baptizados de tomahawks, e num dos maiores velocistas e cabeceadores da história das últimas décadas do jogo. Ao longo de 20 anos, Ronaldo fez a diferença porque é um vencedor num país de perdedores.

Não se ofendam. Na frase anterior, o cronista está a colocar-se claramente também naquela mesma segunda metade do campo. Nos últimos duzentos anos, estamos lá todos, nau dos aflitos, com excepção de uns poucos Ronaldos por tempo e por bairro.

Ronaldo, símbolo do país no mundo, é, ironicamente, o menos típico dos portugueses. É por isso que nos irrita a sua competitividade – oh, como irrita! Ele é um trabalhador obsessivo, científico, rigoroso, dedicado, metódico, profundamente ambicioso e que não pede desculpa por querer ser o melhor. Isto num país de gajos porreiros, relaxados, amigos da palmadinha nas costas, para quem o trabalho está longe de ser a coisa mais importante do mundo – muito menos os resultados. O que importa ao português médio é saber que, se quisesse, podia ter chegado lá, que não era inferior aos outros muito-pelo-contrário, que tinha tudo. Mas depois o joelho, o árbitro, a relva, o azar. Enerva-nos em Ronaldo que queira sempre ganhar, que ponha a vitória, os títulos, o golo, os recordes acima de tudo; que esteja sempre a fossangar para marcar mais um, como se não fosse exactamente para isso que está lá. Choca-nos esta funcionalidade. Para nós, isto é tudo uma coisa porreira em que o que importa é correr muito, suar a camisola e chorar a infelicidade no fim. Porque isso é que é ser português. Assim é que eles que aparecem na televisão são iguais a nós: pobrezinhos, tristes, infelizes, cheios de qualidades, mas amargurados.

A forma como, ao longo de 20 anos, Ronaldo foi criticado por tantos dos seus compatriotas de cada vez que falhou não tem, provavelmente, comparação na história do futebol mundial. As vezes em que a sua própria claque chamou por Messi. E mesmo assim, mesmo com todas as câmaras do mundo apontadas a ele, Ronaldo nunca respondeu mal a um jornalista português (tirando aquele episódio daquele microfone da CM tv atirado ao lago, mas, caramba, só por isso devia ter ganho mais uma Bola de Ouro). Quando Ronaldo chegou ao futebol nacional, ainda se plantavam alhos atrás das balizas para dar sorte. Roberto Martinez é que nos topou: em três meses, percebeu que o povo gosta é que ele fale de força e fé e empenho e espírito de equipa. Bola, nada. “O que é que promete fazer se ganhar o Europeu?”, atirou uma jornalista na última conferência de imprensa antes da partida para a Alemanha, em jeito de passe adocicado para golo. E o seleccionador logo encostou: “Vou a Fátima!”. É isso. Nasceu na Catalunha, mas já é dos nossos. Como Scolari, com a senhora do Caravaggio. Ronaldo não. Ronaldo é cerebral num país de sentimentais. Nele, o que mais importa é a cabeça. Como no poema de William Ernest Henley, ele é senhor do seu destino porque é comandante da sua alma. Ao contrário do Abel Xavier que se atira à guarda-redes para fazer um penalty. Do João Pinto que esmurra o árbitro no estômago. De Sá Pinto que se mete no carro e vai bater ao próprio tr… Pesquisem, gen-zis, pesquisem.

Serve isto para voltar ao choro. À imagem santa de Eusébio deixando o relvado de Wembley em lágrimas, naquele Verão de ’66 (o cronista ainda não estava cá – aí é que era tempo dos boomers-mesmo-boomers – isto é memória colectiva, ok?). Ronaldo, que tão bem guarda a sua vida pessoal e da qual tantas vezes sentimos que sabemos tão pouco, chorou várias vezes ao longo da carreira. Quando veio miúdo da Madeira jogar no Sporting e chorava todos os dias, longe da família. Quando perdemos a final contra a Grécia no Euro 2004 que organizámos e “tínhamos tudo” para ganhar. Quando levantou a taça de campeão europeu em 2016 e quando saiu, atirado borda fora do Mundial por Marrocos, ainda há pouco, em 2022. Nos dois primeiros prantos, ainda era miúdo; nos dois últimos, nunca acreditei. Sempre pareceram falsos. Ronaldo a tentar ser português, sentimental, emocional como nós gostamos. Ou só o narcisista a pensar nas câmaras e a tentar compor mais uma imagem para a História.

Mas, esta semana, todos vimos como voltou a chorar como um garoto. Um terrestre. No prolongamento do jogo contra a Eslovénia, oitavos de final do Euro 2024, quando falhou o penalty que podia ter resolvido tudo ou Oblak o defendeu. Chorou mesmo. Chorou a sério. Soluçou. O corpo todo estremecia. Os companheiros confortaram-no genuinamente, mesmo agora que ele já está longe de se comportar como o centro das atenções em campo. Agora que os portugueses nem sequer lhe perdoam ter 39 anos. Como se não tivesse direito a envelhecer sem ser xingado. Como se lhe dissessem: “Estás a ver? Estás velho. Velho como os outros. Velho como nós. Querias jogar para sempre? Quem é que tu pensas que és? És igual a mim”. Só que não. Ali, naquele momento, Ronaldo falhou e chorou como um português, sim. Mas o que o distingue, é que, poucos minutos depois, secou as lágrimas, pegou na bola e foi bater penalty outra vez, contra o mesmo guarda-redes, na mesma baliza, no primeiro do desempate por grandes penalidades. Não se escondeu. Não tremeu. E não falhou.

Senhor do seu destino, comandante da sua alma. Independentemente do que aconteça no resto do Euro, e mesmo que termine já esta sexta-feira, obrigado, CR7. Por estes 20 anos. Por este sonho. Por este penalty. Os críticos tinham atirado bola para um lado e o guarda-redes para o outro, mas, mesmo assim, não estiveste mal.