O Senhor Ibrahim tornou-se, porventura, o personagem mais célebre do escritor e dramaturgo francês Eric-Emmanuel Schmitt, por ser um ícone da tolerância num mundo de intolerantes. A peça “O Senhor Ibrahim e as Flores do Corão” conta a história de um adolescente judeu que, nos anos 60, se torna amigo de um merceeiro árabe da rua Bleue e acaba por ser adotado por ele. O rapaz conversa demoradamente com o velho muçulmano e entre eles nasce uma relação muito forte e cúmplice. O velho revela uma cultura de sensibilidade, uma poesia e uma sabedoria que ajudam o jovem a limpar o olhar e a libertar-se de preconceitos.
Em 2012, a encenação desta peça valeu ao Teatro Meridional o Prémio do Público no Festival Internacional de Teatro de Almada. No ano em que a companhia celebrou os seus 25 anos de existência, o espetáculo voltou para nos encantar e despertar mais uma vez para realidades que nos atravessam e nos provocam sofrimento. Na altura fui ver a peça, um monólogo em que Miguel Seabra interpretava o papel do rapaz que, muitos anos depois, conta como cresceu a partir das estórias do Senhor Ibrahim. Durante toda a peça, que é de uma beleza sem igual, o ator recorda o velho amigo que o ajudou a crescer e a enfrentar a vida sem medos, com coragem, confiança, entusiasmo e mais liberdade interior.
Se hoje volto ao Senhor Ibrahim e ao ator Miguel Seabra é porque sinceramente continuo sem saber quem me interpelou mais, se a peça ou o ator. A narrativa é cheia de elevação e profundidade, mas fascinou-me o facto de Miguel Seabra a ter representado magistralmente depois do AVC que teve aos 30 anos e o fez ficar 10 dias em coma, tendo que reaprender a andar e a falar. Miguel Seabra teve que voltar a aprender absolutamente tudo e passou a viver com o braço direito paralisado, mas não desistiu de ser quem era. Voltou a fazer quase tudo e revelou-se um ator ainda mais completo e mais inspirador. Penso que teve sorte por ter tido família e amigos a apoiá-lo, médicos e terapeutas que não desistiram dele nem o deixaram desistir, mas também teve a sorte (uma sorte que dá muito trabalho, note-se!) de poder retomar o seu trabalho e confirmar a sua paixão pelo teatro.
A esmagadora maioria das pessoas que sofrem dano cerebral grave nunca mais voltam a ser quem eram. Num instante a vida muda, e muda dramaticamente para sempre. No dano cerebral adquirido a realidade é tremenda e casuística. Não há regras nem padrões, e não existem respostas-chave. Cada caso é um caso, e os únicos pontos em comum são o fato de tudo acontecer de repente, de forma inesperada, mas também o sinuoso caminho que todos os acidentados percorrem. Eles, as suas famílias e os seus amigos. Isto, quando os amigos se mantêm, porque até estes se perdem com o tempo. Quem tem um acidente e sofre traumatismo crânio-encefálico grave muda para sempre de vida. O acidente ou a queda marcam um antes e depois numa vida que deixa completamente de ser como era.
A vida pára para as vítimas de TCE – Traumatismo Crânio Encefálico –, mas a tragédia maior é que também paralisa as vidas das famílias e cuidadores, pois até a forma de amar e de se relacionarem entre si muda irremediavelmente. Para quem nunca passou por esta situação e desconhece esta realidade, é inimaginável passar a viver com um conhecido-desconhecido. Amar um pai, um filho ou um amigo que, de um minuto para o outro, se transformam e passam a ter reações despropositadas ou desfasadas e, por vezes, até agressivas, é difícil. Para cúmulo, estas pessoas também podem ficar desprovidas de memória e de referências que eventualmente as poderiam ajudar a estabilizar os traços de personalidade que antes as caracterizavam, e tudo isto é de uma exigência a toda a prova.
A Novamente, associação que acompanha cerca de 400 famílias por ano (mais de 200 em profundidade e com muita proximidade!), é composta por gente que conhece bem a adversidade TCE. Todos, especialistas e leigos, sabem que no dia em que o acidente acontece paralisa completamente a vida da vítima, mas também da sua família, coisa que por si só nos obriga a refletir sobre mais e melhores maneiras de prevenir, tratar e acompanhar o TCE.
Quando as vítimas ainda são menores ou moram em casa dos pais, a mãe ou o pai podem começar por passar longos meses no hospital. Como não existe uma rede de apoio aos cuidadores e o coma pode ser prolongado, começa aqui a desventura. O quadro clínico é incerto e a frase mais repetida pode ser “é um quadro em aberto, estamos a aguardar”. A comunicação é difícil e fica minada de equívocos, entropias e mal-entendidos. As famílias ficam extremamente vulneráveis e o sofrimento não as ajuda a manter a lucidez.
Acresce a este “quadro em aberto” a já referida perda dos amigos e apoios, que acontece num ritmo inversamente proporcional e é fulminante porque mata a esperança de retomar os círculos de pessoas que apoiavam, conheciam, amavam e compreendiam. Todas estas pessoas que se vão embora fazem ainda mais falta após o acidente ou AVC, mas não sabem lidar com a situação. Está estudado que ao fim de 1 ano de sucessivos tratamentos, apenas 7% das vítimas mantêm os seus amigos. O tempo é muito erosivo e o desconhecimento sobre o que é, por definição, desconhecido, não ajuda nada nem ninguém.
Mais isolados e mais desprotegidos, obrigados a enfrentar uma realidade fragmentada, descontínua, complexa e nebulosa, os familiares e cuidadores vão entrando num processo de burnout. O sofrimento é agudo, mas não têm a quem recorrer porque não existem apoios nem uma rede constante para lhes valer. As sucessivas transferências entre hospitais e as altas rápidas demais, quando os doentes ainda não estão prontos e as casas e as famílias também não estão adaptadas, são um verdadeiro calvário para todos. Muitas vezes as altas são dadas sem preparar o passo seguinte, sem suporte à família e sem rede de cuidadores (até para cuidar dos cuidadores mais próximos) e isso tem efeitos devastadores.
Entretanto, muitos dos acidentados ainda sentem como antes e, mesmo sabendo que têm sequelas, não são capazes de perceber a extensão destas mesmas sequelas. E mais uma vez as redes de apoio médico ao domicílio não estão preparadas. Apenas existem para casos muito extremos.
O passo seguinte, depois da alta, é a reabilitação e também aqui os doentes e famílias podem entrar num túnel muito escuro e comprido. Nos 4 centros de reabilitação operacionais o número de camas é claramente insuficiente e, por vezes, verifica-se o mesmo que nos hospitais: aconteça o que acontecer, esteja a reabilitação no ponto que estiver, se o tempo esgota, o doente tem que ir embora. Quando acontece, chega a ser perverso. No mínimo, desumano.
O sistema, ou a não-fluidez do sistema, as andanças e passagens de um lado para o outro causam danos brutais em cima de traumatismos irreversíveis. E, por isso, é frequente os doentes terem retrocessos e todos (familiares, cuidadores e os poucos amigos que restam!) atravessarem fases de grande sofrimento. É nestas alturas que a lendária máxima “uma tragédia nunca vem só” atinge o seu pico máximo.
Por tudo isto e muito mais, que levaria dezenas ou centenas de páginas a descrever (porque cada caso é mesmo um caso!) a Associação Novamente tem organizado várias mesas redondas ao longo dos anos, nas quais senta decisores e executivos para conhecerem a realidade integral do TCE. Quem está distante desta realidade sabe muito pouco sobre o antes, o durante e o depois do traumatismo crânio encefálico, mas importa ter um conhecimento geral e perceber também a falta de adequação das respostas, pois muitos doentes chegam a ser enviados para sítios que não estão preparados para os receber. Falo de hospitais, centros de saúde e de reabilitação que não têm a especialidade de neurologia. Ou fisioterapia.
Acontece que os diagnósticos neurológicos não são como os das fraturas. O dano cerebral grave é um prognóstico em aberto e assim pode permanecer longos anos. Nesta lógica e dada a incerteza agravada pela casuística, a Novamente está cada vez mais internacional e mais integrada em redes europeias e fóruns mundiais que lidam com problemáticas semelhantes. Falo da Federação Europeia de Famílias, que representa todas as deficiências na Europa e tenta minimizar o seu impacto nas áreas sociais, da justiça e dos direitos humanos, mas também do European Disability Forum, criado para garantir que a Convenção dos Direitos Humanos das pessoas com deficiência, promulgada pelas Nações Unidas, é cumprida.
Ontem, a Novamente reuniu na Gulbenkian especialistas de vários países que vieram partilhar experiências e enunciar boas práticas.Coisas tão simples como ter um ‘coordenador’ a trabalhar com as vítimas e as famílias, ou ‘um gestor de caso’ que não deixa que a pessoa se perca nos labirintos do mundo clínico-hospitalar e do sistema nacional de saúde, fazendo pontes entre todas as áreas e entidades, é uma possibilidade. Existe na Dinamarca e em Espanha, mas não só.
Volto ao início, ao Miguel e ao Senhor Ibrahim, porque ontem fui obrigada a calçar os sapatos de quem sofre dano cerebral adquirido por ter assistido a todas as conferências dos especialistas trazidos pela Novamente. Percebi que temos um longo caminho a percorrer em matéria de divulgação e conhecimento da matéria, mas acima de tudo tive a certeza absoluta de que o Miguel posso ser eu. Ele aprendeu a usar o seu braço paralisado e a fazer as coisas de outras maneiras, com a paixão de sempre.
Hoje mesmo um de nós pode ter um AVC, sofrer uma queda ou ser vítima um acidente que deixa o nosso mundo de pernas para o ar. Todos somos vulneráveis e ninguém está imune. E se assim é, vale a pena ficarmos mais atentos, mais vigilantes e mais conscientes desta realidade. Sobretudo mais certos de que as vítimas e as suas famílias merecem mais apoios e precisam das ajudas dos outros. E os outros somos nós.