Segundo as últimas “legislativas”, há 400 mil portugueses cujo voto não conta. Segundo sondagens recentes, esse número pode ser de 600 mil ou 700 mil. Para arredondar, convencione-se que há meio milhão de cidadãos que não são tratados enquanto tal. Meio milhão. Não são emigrantes que sumiram na Nova Zelândia e perderam de vez os vínculos à pátria. Não são infelizes que padecem de incapacidade psíquica, pelo menos não em maior proporção que os eleitores dos restantes partidos ou em maior grau que o espectador médio da SIC Notícias. Não são terroristas na clandestinidade, prestes a rebentar com clínicas de abortos e a enfiar o prof. Galamba, ilustre cartomante e fanático de computadores, em alcatrão e penas. São gente comum, que antes privilegiava o PSD, o CDS e até o PCP, e que agora escolhe o Chega.

Sucede que optar pelo Chega nas urnas é o mesmo que ficar em casa ou aproveitar para rabiscar símbolos fálicos no boletim: não serve de muito. E não sou eu que o digo. Quem o diz são 96,3% dos “media”, 98,8% dos comentadores oficiais e oficiosos, 99,2% dos políticos em geral e 100% dos dirigentes, funcionários, zeladores e compadres do Partido Socialista, os quais em conjunto decidiram a nulidade cívica de meio milhão de criaturas. Hoje em dia, o cálculo das possíveis alternativas ao encantador socialismo deixou de se fazer através da corriqueira soma e passou a fazer-se mediante subtracção, a subtracção dos contumazes que, em quantidade aparentemente crescente, tendem a apreciar o dr. Ventura.

Na actual “conjuntura”, a virtude aumenta em função da distância que se guarda face ao Chega. Entre as agremiações não marxistas, o bom líder é o que ocupa o respectivo tempo a traçar linhas vermelhas em redor da “extrema-direita”. O óptimo líder é o que nem se importa de perder eleições desde que o seu asco à “extrema-direita” fique explícito. Isto na perspectiva da opinião publicada, que zela para que os limites estabelecidos pelo PS ao espectro político sejam aplicados com rigor. “Alianças”, “pactos” e “acordos” são palavras malditas, apenas aceitáveis se proferidas em tom de veemente repulsa e idealmente seguidas de cuspidela no chão.

É engraçado. O PS não inventou o Chega, mas disfarça bem. E aproveita melhor. A exacta pandilha que governou quatro anos com o escancarado apoio de todos os comunistas disponíveis conseguiu impedir a “direita” de se juntar com aqueles a que a pandilha chama “radicais”. É uma proeza, que implica enorme astúcia do PS ou terminal ingenuidade da “direita”. Em qualquer dos casos, o resultado é um maná para a esquerda, que pegou nas intenções de meio milhão de votantes e, com o espectacular consentimento da oposição, as condenou à inconsequência. Ou ao lixo, que é termo mais adequado. Os socialistas, que sem auxílio apertam os sapatos com dificuldade, sequestraram às claras meio milhão de pessoas.

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O truque tem a sua graça. E ainda melhora. É evidente que os simpatizantes do Chega não juraram obediência eterna. Mesmo sem alianças, pactos ou acordos com o séquito do dr. Ventura, pareceria razoável que, no presente cenário, o PSD e a IL tentassem no mínimo conquistar o eleitorado do dr. Ventura em lugar de o catalogar como a derivação do Belzebu. Por sorte estamos em Portugal, pelo que a razão não vem ao caso. O PSD não se esforça por compreender os motivos que levam meio milhão de indivíduos comuns a preferir as Forças do Mal. E a IL esforça-se por dedicar-lhes a estima que Maomé dedicava ao bacon estaladiço. Para a “direita” tradicional, o inimigo confesso ou dissimulado é o Chega, responsável por cerca de 0% das calamidades nacionais, e não o PS, esse rodapé simpático e despiciendo que manda nisto vai para três décadas quase ininterruptas. O PS, desculpem a rima, agradece.

Repito: o que espanta na estratégia não é a sofisticação, e sim o facto de tamanha infantilidade funcionar. O PS, directamente ou por intermédio de incontáveis comentadores subsidiários, espalha umas conversas sobre o perigo de o Chega prosperar (na verdade um desejo nada oculto). E os partidos à direita do PS ouvem as conversas, respeitam os avisos e, com resignação ou alegria, erguem as “cercas sanitárias” que o PS impõe.

Note-se que em nenhum dos parágrafos anteriores comentei o próprio Chega, que em questões sociais me parece estridente, em questões “culturais” irrelevante e em questões económicas estatista. Pormenores de lado, possui dimensão suficiente para ser indispensável à “direita” ou, conforme convém a outros, para tornar a “direita” dispensável. Em suma: sendo as coisas o que são, o Chega podia contribuir para um arranjo que nos aliviasse do sufoco e da miséria socialistas. Porém, sendo as coisas o que são, não pode. Por isso o sufoco se agrava, e a miséria também.

Nota de esclarecimento:

Em crónica publicada no jornal “Observador” no dia 20 de junho de 2020 sob o título “As minhas indignações não são menos do que as deles”, descrevi um episódio que o meu pai, já falecido, me contara há muitos anos que, segundo ele, havia ocorrido entre si e um explicador de físico-química, residente em Leça da Palmeira.

A presente nota destina-se a assegurar que apenas reproduzi de memória as palavras do meu pai, sem intenção de identificar ou imputar qualquer facto a pessoa determinada e concreta, sem averiguar o relatado.

Não foi minha intenção ofender a memória do visado nem o legado que deixou enquanto pessoa respeitada e estimada em Leça da Palmeira e Matosinhos.

Constato, contudo, que tal alusão ofendeu de forma inadvertida a memória de pessoa falecida e de seus familiares, o que lamento profundamente expressando as minhas sinceras desculpas.