O infeliz e preocupante episódio ocorrido em Setúbal, decorrente da forma como estavam a ser recebidos os cidadãos ucranianos que procuram asilo político em Portugal, constitui um exemplo de que a terminologia clássica usada na Teoria das Relações Internacionais se revela insuficiente para retratar a realidade atual.
De facto, é saber antigo que as duas principais estratégias usadas nas Relações Internacionais passam pelo hard power, a ameaça do uso da força, ou seja, a subida aos extremos, de que a invasão russa da Ucrânia constitui o mais recente exemplo, e pelo soft power da Diplomacia. Aliás, os manuais ensinam que a Diplomacia é a continuação da guerra por outros meios e, como tal, mesmo em tempos de paz, as potências recorrem ao soft power para influenciar as decisões dos outros países. Assim, procuraram conquistar o coração e a mente de grande parte da população e dos dirigentes desses países através de palavras e ações que parecem destinadas – sobretudo ou apenas – a tecer laços potencializadores de um bom relacionamento entre as duas partes. Daí o surgimento de tantas associações em cuja designação consta a palavra “Amizade”.
Porém, o século XXI está a assistir a uma nova estratégia que tem na China e na Rússia os principais agentes a nível mundial. Uma estratégia que, em 2017, foi batizada como sharp power e que substitui o uso da violência pelo recurso à desinformação destinada a interferir nos assuntos internos de outros países de forma a manipular a opinião pública e a condicionar a sua política. Uma estratégia que, no caso da Rússia de Putin, conta com um poderoso ecossistema, envolvendo não apenas a Fundação Russkiy Mir por si criada em 2007.
Num artigo científico já no prelo em Nova Iorque identifiquei sete dos outlets desse ecossistema e expliquei de que forma aprisionam a opinião pública russa e condicionam o pensamento alheio na tentativa, frequentemente bem-sucedida, de imporem a visão que favorece os interesses do Kremlin.
É no âmbito do sharp power que deverá ser analisada a situação que colocou a Associação dos Imigrantes dos Países de Leste (EDINSTVO), liderada por Igor Khashin, um russo com ligação a Putin, a participar na receção aos refugiados ucranianos que procuraram a proteção da Câmara Municipal de Setúbal. Uma autarquia onde trabalha Yulia Khashina, esposa de Igor, e que, desde 2005, financia a EDINSTVO.
Apesar de ainda haver muitos «pormaiores» que carecem de explicação, designadamente o destino dos documentos fotocopiados e dos dados provenientes das questões com que os candidatos ao direito de asilo se viram confrontados, não restam dúvidas de que ninguém em seu perfeito juízo considerará normal que os cidadãos ucranianos que fogem do poder de fogo russo sejam recebidos por alguém com relações privilegiadas com o plutopopulista que lidera a Rússia.
Uma situação que urge esclarecer e, obviamente, resolver, pois não é aceitável aumentar a insegurança, o sofrimento e a inquietação familiar de quem se encontra tão fragilizado. O normativo internacional não o permite. A dimensão humanista que faz parte do ADN português não o aceita. Com a agravante de ser altamente provável que os portugueses não demorem a saber que o sharp power russo não atracou apenas na cidade do Sado.
Caso para revisitar o título de um livro e de um filme dos tempos da guerra fria: «Da Rússia, com (des)amor».