No meio do ruído (justamente) gerado pelas polémicas alterações dos partidos às regras do financiamento partidário, quase todos os protagonistas da política nacional sentiram a necessidade de se pronunciar. Sublinhe-se o ‘quase’. É que prevalece um silêncio ensurdecedor: o do Presidente da Assembleia da República. Eduardo Ferro Rodrigues não emitiu uma declaração, não esboçou um gesto, não disse uma palavra, não solicitou um único esclarecimento. É admissível que o Presidente da Assembleia da República, que deve garantir o regular funcionamento do parlamento e do processo legislativo, assista imóvel à revelação de que a normal transparência foi sabotada pelos partidos, que instrumentalizaram um grupo de trabalho em benefício próprio? Obviamente que não. Pelo menos não o é num país que leve as suas instituições políticas a sério – o que, afinal, nunca pareceu ser o caso de Portugal.

É função do Presidente da Assembleia da República coordenar e dirigir os trabalhos parlamentares. Mais: compete-lhe assegurar o cumprimento do Regimento (isto é, o conjunto de regras para as actividades parlamentares) e zelar pelo funcionamento dos trabalhos parlamentares. Ou seja, Ferro Rodrigues, como segunda figura do Estado, não é responsável pelo conteúdo das leis elaboradas e discutidas nas comissões parlamentares – isso é com os partidos, que apresentam e votam as propostas. Mas Ferro Rodrigues é o primeiro responsável pelo respeito pelos procedimentos parlamentares, definidos para salvaguardar, entre outras, condições de igualdade, representação política e transparência (para escrutínio público). É, simplificando, o árbitro do jogo político no parlamento, e quem assegura que todos seguem as regras delineadas à partida.

Ora, neste caso das alterações ao financiamento partidário, há três pontos que objectivamente espelham a violação dessas regras, leia-se o regular funcionamento dos trabalhos parlamentares. Primeiro, no respectivo grupo de trabalho, os partidos reuniram por nove vezes à porta fechada – o que contraria o procedimento habitual e não tem aqui justificação. Segundo, ao contrário do que sempre sucede nos trabalhos parlamentares, desta vez não houve actas ou quaisquer outros registos acerca do teor das discussões e do processo legislativo, tornando impossível o escrutínio público. Terceiro, de forma insólita, os partidos optaram por não ser identificados nas suas propostas e, em vez da indicação partidária, estas surgiram nos documentos de trabalho sob anonimato, para que não se percebesse quem propôs o quê (caso os documentos saíssem do grupo de trabalho) – e isto, se não for inédito, anda lá perto.

Resumindo, Ferro Rodrigues falhou duas vezes. Num momento inicial, não foi capaz de prevenir tal sabotagem dos partidos aos normais procedimentos parlamentares no grupo de trabalho sobre o financiamento partidário – ou seja, não foi capaz de zelar pelo regular funcionamento dos trabalhos parlamentares, como é das suas funções. E agora, confrontado pelos factos que vieram a público pela comunicação social, Ferro Rodrigues optou pelo silêncio conivente com o golpe dos partidos. Ou seja, ficou calado num momento-chave de justa indignação popular em que, pelas suas funções, deveria ter imediatamente emitido uma declaração pública, solicitado esclarecimentos aos partidos e aos serviços parlamentares, censurado o comportamento dos deputados e garantido que tal não se voltaria a passar sob a sua Presidência.

Este silêncio é inadmissível e torna o Presidente da Assembleia da República cúmplice do golpe partidário. No final, tudo conduz à triste constatação de que quem está a zelar pelo regular funcionamento da Assembleia da República não está nada preocupado com o regular funcionamento da Assembleia da República. O que sobra, então? Só Marcelo. É por isso que, ao Presidente da República, já não basta olhar ao conteúdo das alterações que os partidos desenharam à sua medida, vetando o diploma. É necessário que, em nome do regular funcionamento das instituições democráticas, Marcelo aponte o dedo: ao fechar os olhos e ficar calado, Ferro Rodrigues legitimou o golpe.

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