A noite de terça-feira não foi menos frenética por sabermos que os resultados eleitorais definitivos das presidenciais americanas ficariam para mais tarde. Os números sorriam a Joe Biden já há algumas semanas. E continuam a sorrir, apesar de ainda não haver certezas absolutas de quem será vencedor e de sabermos que vem aí uma batalha jurídico-constitucional que vai levar demasiado tempo para não deixar feridas abertas numa América já tão social e politicamente dividida.
Mas nada disto é já novidade. No entanto, houve uma mudança que parece ter tido pouca atenção: Trump ganhou o Texas, mas a vitória não foi folgada. A Geórgia e a Carolina do Norte ainda estão em dúvida quando escrevo este artigo. E o Arizona, que pode não ser considerado um estado do Sul na aceção clássica de geografia americana, também faz parte desta dinâmica. Mesmo que “caiam” para Trump, caiu também, na terça-feira, uma longa tradição que remonta aos anos de 1970. O Sul já não é solidamente republicano. Dizem os especialistas, por causa da demografia.
Composto por dez estados (destes, excluo a Virgínia, que tem um percurso político diferente dos outros todos), o Sul divide-se agora entre os chamados “estados em crescimento” – a Carolina do Norte, a Carolina do Sul, a Flórida, a Geórgia, o Texas – e cinco “estados estagnados” – o Alabama, o Arkansas, a Louisiana, o Mississípi e o Tennessee (a terminologia é roubada a Charles Bullock et al). Os últimos, como indica a terminologia, estagnaram, quer do ponto de vista demográfico, quer do ponto de vista social. Já os “growth states” desenvolveram grandes metrópoles que, aos poucos, foram atraindo migração interna e externa, a ponto de atingirem um crescimento populacional que ultrapassa quaisquer outras regiões a nível nacional. A Flórida cresceu 177 por cento entre 1970 e 2010; o Texas, 125 por cento; e a Geórgia 111 por cento no mesmo período.
Quem veio para o Sul, quer dos Estados Unidos, quer de outros países, fê-lo, essencialmente, para preencher vagas de emprego qualificado e bem remunerado. São jovens, com educação superior, parte deles de origem latina. Têm o perfil que, geralmente, é atribuído aos eleitores do Partido Democrata. Já os estados estagnados continuam a votar mais ou menos da mesma maneira.
Analistas apontavam para que estas alterações só tivessem verdadeiro impacto dentro de uma década ou um pouquinho mais, mas, pelos vistos, manifestaram-se mais cedo, talvez ainda sem o cariz transformador que se espera no futuro. A razão mais provável para que isso tenha acontecido, foi o nível recorde de mobilização destas eleições (quer da parte dos democratas quer da parte dos republicanos), que precipitou tendências que levariam mais tempo a expressar-se.
Os autores de The South and the Transformation of U.S. Politics acreditam que esta propensão vai mudar o mapa eleitoral norte-americano. Que, em breve, o Partido Democrata será naturalmente maioritário, pela simples razão que a sua coligação (minorias étnicas, jovens, trabalhadores liberais e com grau de escolaridade elevado) tende a aumentar para mais de 50 por cento dos americanos. É a nova versão de uma profecia demográfica que começou a ser veiculada no início dos anos 2000 e que, volta não volta, reaparece com uma nova roupagem.
Mas demografia não é destino. Neste caso, é uma chamada de atenção para o Partido Republicano: com um eleitorado envelhecido, empobrecido, rural, religioso e maioritariamente branco, vença ou não as eleições (o que é pouco provável), ou mantenha ou não Trump, terá que se reinventar com novas causas para novos setores sociais. Ou acabará por desaparecer. Que as eleições de terça-feira sejam um ponto de partida para se começar a pensar neste assunto. Ou o resultado é um país com dois partidos, onde um ganha eleições quase sempre e o outro só ganha eleições quando o adversário perde. O que não me parece nada saudável para uma democracia.