Cativos de uma época definida por homens pequenos, restava-nos, até há pouco, o consolo de podermos festejar os grandes de outrora. Já nem isso nos é permitido. Beethoven nasceu no dia 15 ou 16 de Dezembro de 1770 e 2020 teria sido o seu ano se não tivesse surgido uma doença respiratória que nos lançou num turbilhão de histeria e suspendeu a festa. Talvez seja melhor assim: seria quase ofensivo celebrar o compositor da liberdade no ano em que ocorreu um liberticídio inaudito. Sem embargo, esta é uma ocasião apropriada para sondarmos o significado de liberdade no léxico, biográfico e musical, de Beethoven e, de passagem, tentarmos entender como foi possível chegar, nos últimos meses, a um tal ponto de degradação, porventura sem retorno, da ideia de sociedade aberta.
Para Ferruccio Busoni, Beethoven foi a personificação dos ideais, “puros e elevados”, de “liberdade, igualdade e fraternidade”. Com efeito, segundo alguns plutarcos, o jovem autor da laudatória Cantata pela Morte de José II (1790) esteve atento à construção, desenlace e previsível corrupção da Revolução Francesa, e, em determinados momentos, ter-se-á deixado aliciar pelo proselitismo jacobino, nomeadamente quando aderiu à ensinança de Eulogius Schneider, professor de literatura e artes em Bona, mais tarde oficial do Terror em França e, finalmente, vítima do mesmo. No entanto, as criaturas inteligentes e sensíveis têm o hábito de crescer, questionar, hesitar, mudar e a realidade, como sempre, é um pouco mais complicada do que a caracterização efectuada por sentenças categóricas. Podemos afirmar, com alguma segurança, que nem Beethoven foi um admirador incondicional da Revolução Francesa – não há dados biográficos convincentes que nos autorizem a concluir que as convicções republicanas de Beethoven foram duradouras ou inflexíveis –, nem o seu juízo sobre a liberdade esteve imune ao contágio com a perigosa utopia da igualdade.
A música e a lírica de Beethoven estão pontuadas por um discurso político forte e reflectem uma relação pendular com o poder. As variações do seu vínculo à figura de Napoleão, que começou por ser o objecto da dedicatória da Terceira Sinfonia, para depois ter o nome excluído, com agressividade, da partitura, são ilustrativas da saudável volubilidade das suas opiniões. O compositor de Bona foi um observador activo e minuciosamente interessado nas circunstâncias sociopolíticas do período em que viveu – um período determinante e tumultuoso – e deixou essa inquietação inscrita nas suas criações. Há que ter, todavia, alguma cautela e evitar uma leitura ideológica primária da sua obra. A grande arte não se explica, como os historicistas pretendem, com o contexto social. Beethoven não foi um génio porque testemunhou uma idade revolucionária. Sê-lo-ia em qualquer circunstância: a sua arte é universal e passou com distinção o teste do tempo. Adaptando um dito de Harold Bloom, digamos que uma leitura política de Beethoven ficará sempre aquém da leitura beethoveniana da política. Posto isto, há que acrescentar que seria absurdo desvalorizar o conteúdo ideológico da música de Beethoven e perder uma oportunidade ímpar de entender melhor o seu tempo e o nosso – prospecto que, obviamente, não está ao alcance deste texto, que pretende apenas apontar a incoerência intrínseca às acepções mais comuns do conceito de liberdade.
A obra-prima da maturidade de Beethoven, a Nona Sinfonia (1824), e, em particular, o remate lírico do quarto andamento, a Ode à Alegria, ilustram bem a ambiguidade ideológica do seu autor. Na Ode à Alegria, cujo texto se baseia no poema de Schiller, convergem os sentimentos políticos, alguns contraditórios, que percorreram a obra do mestre, da já referida cantata para José II, à Missa Solemnis (1823): o impulso revolucionário, a celebração de déspotas esclarecidos, a educação estética segundo o ideal burguês de progresso individual, a natureza elevada a divindade pagã, a liberdade como apoteose fraterna da humanidade.
Esta teia complexa de ideias teve reverberações históricas sumamente significativas: os republicanos franceses lobrigaram, na Ode, a trindade incongruente dos valores revolucionários; os românticos impuseram-na como canto do sublime; os comunistas promoveram-na a modelo musical da sociedade sem classes; aos nazis, a frase “todos os homens se tornam irmãos” não lhes causou suficientes engulhos e Hitler não dispensava a Ode nos seus aniversários (enquanto nos campos de concentração era tocada, ora como peça de propaganda, ora como canção de resistência, consoante o ponto de vista); a Rodésia racista e a União Europeia da burocracia converteram-na nos seus hinos oficiais (curiosamente, no caso da União Europeia, com arranjo do ex-nazi Karajan); e a contemporânea “geração humanitária”, a das grandes causas sociais e ambientais, descendente dos totalitarismos do século XX, ainda se comove, não obstante estar praticamente surda para a grande música, com o derradeiro movimento da Nona. A forma como o tempo consagrou a universalidade de Beethoven é, no mínimo, inquietante e propõe explicações desconfortáveis para algumas perplexidades: se a vizinhança ideológica entre comunismo e nazismo só é negada, ao dia hoje, por preconceito desinformado, que a extinta Rodésia segregacionista e a Europa multicultural partilhem, no elogio da humanidade patente na canção, a sujeição da liberdade à vontade colectiva e a exclusão de todos os homens inferiores (de uma perspectiva racial, num caso, e progressista, no outro), é um facto mais difícil de explicar aos fiéis do progresso humano.
A Ode à Alegria, ao tornar-se uma obra consensual, demonstrou como os consensos podem esconder armadilhas moralmente problemáticas. No filme A Laranja Mecânica (1971), Stanley Kubrick explorou de forma extraordinária a ambiguidade de Beethoven e o seu potencial catártico do bem e do mal. Otto Von Bismarck terá dito: “Quando ouço esta música, torno-me mais corajoso”, o que imediatamente nos remete para o desabafo espirituoso de Woody Allen sobre Richard Wagner e o desejo de invadir a Polónia. O maestro Wilhem Furtwängler afirmou que, em Beethoven, encontra-se, “acima de tudo, a concordância entre o Eu e a Humanidade, entre a inquieta alma do indivíduo e a universal curiosidade”, mas foi na submissão do eu à humanidade, mais do que na conciliação, que se construiu a força doutrinal dominante do século passado e se procedeu à redução da Ode à Alegria a banda sonora dos poderes totalitários, opressivos ou burocráticos. A despeito de estar desprovida do rancor totalitarista e fundada na apoteose da alegria, a liberdade cantada na Ode é indissociável de uma definição de humanidade que, no limite, estará sempre em conflito com a responsabilidade individual.
Se a Nona condensa o percurso político de Beethoven, Fidelio guardou, num atribulado processo de composição, sinais esclarecedores sobre as incertezas do compositor: a sua única ópera tem três versões que, quando comparadas cuidadosamente, lançam alguma luz sobre a evolução das crenças políticas do autor. Além do mais, a própria narrativa do último Fidelio – que, como se fosse um resumo da história da ópera e da sensibilidade das audiências na recepção ao género, começa num registo de Singspiel e termina num coral sinfónico que antecipa o poder da Nona –, insinua dúvidas razoáveis sobre o fervor revolucionário de Beethoven.
Fidelio é a ópera mais famosa e, em certa medida, a fundadora do subgénero que ficou conhecido como ópera de resgate ou de salvamento. Leonore, a personagem principal e heroína do enredo, traveste-se de Fidelio e entra, como ajudante, na prisão onde crê que pode estar o seu marido, Florestan, desaparecido e dado como morto. Efectivamente, Florestan está num calabouço secreto, para onde fora atirado por Dom Pizarro, o governador do cárcere, por delito de opinião. No final, o prisioneiro é libertado graças à intervenção destemida de Leonore e o tirano é deposto sob o júbilo coral do povo e dos restantes reclusos, e, facto significativo, com a aprovação do representante do rei.
Fidelio tem a libertação da tirania como fundo ético indiscutível, mas, resistindo à circunscrição em fronteiras ideológicas mais restritas, presta-se tanto a interpretações revolucionárias como conservadoras ou mesmo reaccionárias. Uma leitura apressada da ópera poderá vê-la como alegoria da Revolução Francesa, Dom Pizarro como o símbolo da aristocracia opressora do antigo regime e o resgate dos prisioneiros como imagem musical da queda da Bastilha. Mas a exegese revolucionária claudica no preciso momento em deitamos os olhos à ficha técnica: o texto original, no qual se inspirou o libretista de Fidelio, o Leonore ou l’Amour Conjugal de Jean-Nicholas Bouilly, é provavelmente um relato literário da resistência aos excessos da Revolução. Bouilly era partidário da realeza, como o seu colaborador Pierre Gaveaux, autor da primeira versão operática de Leonore e do hino Le Réveil du Peuple, a resposta antijacobina à Marsellaise. Além disso, Leonore e Florestan, as vítimas da arbitrariedade do poder, não são um casal de sans-culottes, são aristocratas, e Florestan, como é revelado no final, é amigo de Dom Fernando, o ministro real.
Está bem de ver que foi o Terror, e não os ideais degenerados da Revolução, aquilo que inspirou o texto de Bouilly. É claro que isso não impediria Beethoven ou qualquer outro autor de recentrar o enredo numa outra trama política. Mas Fidelio não nos deixa tirar conclusões definitivas sobre intenções revolucionárias. De facto, de acordo com relatos fidedignos, Beethoven, após o breve período de deslumbramento com a Revolução, ficou horrorizado com os seus excessos e Fidelio manifesta essa desilusão. Acrescente-se as implicações teológicas do nome Fidelio, o pão e o vinho oferecidos a Florestan, a presença angélica de Leonore – que, com luz e compaixão na etimologia do seu nome, guia Florestan “à liberdade do reino celestial” – e as alusões à ressurreição de Cristo e temos um cenário pouco compatível com instintos jacobinos.
Como argumento para a tese contra-revolucionária, há ainda a progressão das diferentes versões da ópera. O Fidelio de 1814 é quase uma obra independente, tais foram as modificações operadas em Leonore (assim se chama a primeira versão, estreada em 1805). O cariz alegórico foi reforçado, afastando definitivamente Fidelio da estética revolucionária, mais mimética. Marzelline, a filha de Rocco, o guarda da prisão, começou por ter um papel importante em Leonore, como que a simbolizar a ascensão social e a atenuação das fronteiras entre a plebe e a aristocracia, para perder destaque num Fidelio mais esquemático no desenho das personagens. No entanto, é na última cena de Leonore, quando o povo desce às catacumbas, que encontramos o mais revelador indício do cepticismo de Beethoven em relação às aspirações revolucionárias.
O povo acaba por anunciar a boa nova da liberdade mas, num primeiro momento, a ambiguidade do seu grito fora de cena – “Vingança! Vingança!” – deixa tudo em aberto e faz o casal temer pela sua sorte. A multidão de Leonore representa o povo da Revolução Francesa e não é tratada por Beethoven e pelo libretista sob uma luz que a favoreça: é uma multidão em fúria, ressentida, uma força volátil que tanto pode cair para o lado do bem como do mal, e que parece querer avisar-nos que a maioria, apesar de soberana, nem sempre tem razão e deve ser afastada das tentações liberticidas por mecanismos não democráticos. É precisamente para isso que existem as constituições: para limitar os poderes do governo e, indirectamente, dos eleitores. Se estas não forem respeitadas, entra-se no território do crime e da tirania, indisfarçáveis sob qualquer máscara, seja a das boas intenções, seja a do autoritarismo ilustrado.
Há ainda duas cenas em Fidelio que vale a pena destacar. No primeiro acto, Rocco diz, a certa altura, “nur auf der Hut, dann geht es gut“, que sói traduzir-se em “tenham cuidado e tudo ficará bem”. Rocco é o burocrata obediente, o funcionário zeloso que racionaliza o homicídio de Florestan. É um símbolo do medo e da obediência ao poder. Embora, movido por um súbito impulso compassivo, ajuda Leonore, Rocco é a imagem negativa da heroína.
A segunda cena que gostava de referir é aquela que conclui a libertação de Florestan. Quando Pizarro se prepara para executar Florestan, Leonore, num gesto desesperado, aponta-lhe uma arma. Logo a seguir, a trompeta anuncia a chegada de Dom Fernando e a salvação do par. No pátio, o povo celebra a liberdade, mas é o acto individual de Leonore que permite a destituição de Dom Pizarro e a ascensão de uma ordem mais justa. Leonore não quer salvar a humanidade nem defender o bem comum: ela move-se, em primeiro lugar, pela fidelidade conjugal e, num segundo plano, pelo sentido de justiça. E fá-lo, valendo-se não só da coragem física, como também do imperativo moral de empunhar uma pistola quando a conjuntura solicita medidas extremas.
Como diz o príncipe Hamlet, que na sua irresolução à beira da loucura parece ter sempre uma palavra decisiva sobre qualquer dilema humano, “a censura de uma só pessoa consciente deve ter mais peso do que um teatro inteiro de ignorantes”. E uma pessoa consciente deve estar preparada para lutar ou para apontar uma arma, retórica ou real, a quem quer que se julgue dono da verdade, da liberdade e dos homens, mesmo quando o teatro aprova o tirano, com a força das ruas ou a discutível legitimidade dos votos.